Capítulo
Oito
Uma tarde,
alguns filmes
A manhã
acompanhava o humor de Charlotte. Agradável. O sol não brilhava intensamente,
possuía apenas um leve fulgor. A brisa era suave e o céu azul abrigava nuvens
brancas. Apesar do inverno, o aroma era doce, meio floral. Era o tipo de manhã
em que grandes coisas acontecem. Uma nova amizade eterna; o título de um
campeonato; o amor da sua vida. Tudo isso pode ser achado em manhãs como essa.
Porém, quando os
olhos são abertos, nada se espera. Charlotte olhou as horas e, em uma nota no
celular, estava o encontro daquela tarde. Filme com as amigas. Luna, Laura,
Blair e Raquel. Pipoca, refrigerante, brigadeiro e risadas. Uma comédia
romântica embalando à tarde. Levantou-se.
Na varanda, o
sol iluminava o rosto dela. Sentiu o calor por mais algum tempo antes de ir
encontrar o pai. Clair havia dormido na casa de uma amiga qualquer. Seriam
somente os dois hoje. Pai e primogênita relembrando o passado. Charlotte deu um
longo suspiro de satisfação antes de descer.
— Bom dia papai!
— Bom dia
Charlotte — Benjamin tirava algo do forno, e respondeu sem se virar.
Ele pôs a
bandeja na frente de Charlotte. Brownies. Charlotte pegou um. Estava quente e a
garota o soltou assim que seus dedos o tocaram. Soprando a pele avermelhada ela
notou um estranho brilho no olhar do pai. Desde que voltara de viajem Benjamin
Tissou andava estranho. Sorrindo pelos cantos, suspirando e cantando. Parecia
um adolescente novamente.
— O que foi?
— Nada —
Charlotte o fitava fixamente — Você está rindo — Observou.
— Um homem não
pode mais rir? — cantarolou tirando algo da geladeira.
— Pode... —
Charlotte estava cautelosa agora — Mas você está rindo demais!
Benjamin deu de
ombros. Continuou a cantarolar e atirar coisas da geladeira. Queijos, sucos,
frutas...
— Pai... —
Charlotte chamou-o — Está acontecendo algo que eu deva saber?
— Defina algo.
— Não sei... Uma
namorada...
Benjamin riu.
Não. Gargalhou. Uma risada gostosa de se ouvir, mas que irritou Charlotte
profundamente.
— Claro que não
— riu novamente — Acho que devemos
jantar fora hoje à noite.
— Hoje a noite
não vai dar. — Ela olhou-o pedindo desculpas — As meninas virão assistir aqui
em casa pela tarde. Não sei que horas voltarão para casa. Talvez até durmam
aqui.
Benjamin
assentiu. Procurava, claramente, uma solução para a problemática. Descartava
uma após a outra, segundo dizia seu olhar.
— Tudo bem.
Façamos o seguinte — sentou-se e tentou manter uma pose casual — eu, você e a
Clair. Amanhã à noite. Naquele seu restaurante favorito. Topa?
— É. Vai ser uma
boa. — Charlotte deu um beijo no pai e saiu da cozinha, rumo ao quarto.
Uma vez lá
dentro, sentou-se à mesa do computador. Abriu a página do Word e começou a
digitar algo. Uma lista. Pipoca. Refrigerante. Petiscos. Brigadeiro. Filmes.
Cobertores. Travesseiros. Imprimiu. Com um lápis, anotou no rodapé da página:
“Não se esquecer de ligar a wifi”.
Dobrou a folha
ao meio e desceu. Encontrou o pai na cozinha, ainda comendo.
— A Maria já
chegou?
Maria era a
governanta da casa. Uma mulher já idosa. Por volta dos sessenta anos, o fios
brancos já rareando. Pequenina, fazia o papel de avó de Clair e Charlotte.
Havia sido a babá de Charlotte e, até onde a garota sabia, trabalhava na casa
antes mesmo de ela nascer. Cher e Clair conheciam-na desde sempre e não conseguiam
imaginar a vida sem a senhora.
— Na biblioteca.
Arrumando os livros. — Benjamin respondeu, e acrescentou quando Charlotte já
estava saindo — Não sei onde ela acha tanta bagunça. Fissionada por arrumação
aquela ali. Eu disse a Sara, mas ela me ouviu? Nãaao.
Cher riu e saiu,
balançando a cabeça. O pai às vezes conseguia ser tão imaturo...
Encontrou Maria,
não arrumando, mas lendo. Dom Quixote era o título do livro. Não queria
interromper a leitura, mas precisava arrumar a casa. As amigas chegariam às
14h. Já eram 10h. E ela não fazia a menor ideia de como organizar uma reunião.
Este tipo de encontro geralmente era feito na casa de Raquel. Mas o pai de
Raquel estava de férias e nenhuma delas gostaria de incomodar o homem.
Pigarreou para chamar a atenção de Maria.
— Ah, olá
Charlotte — ela riu por sobre o grosso livro — Deseja alguma coisa?
A amabilidade da
mulher deixou Charlotte envergonhada. Ela nunca reagiria assim a alguém que
interrompesse uma atividade sua.
— Hã... Na
verdade preciso que arrume isso para mim — entregou a folha branca.
— Hum... — Maria
passou o olho pelo papel — Uma festinha?
— Mais ou menos
— Charlotte respondeu evasivamente — Mas se eu estiver atrapalhando...
— Oh! Não. De
maneira alguma. — passou as mãos pelo exemplar de Dom Quixote. — Miguel de
Cervantes pode esperar um pouco enquanto arrumo as coisas para a minha querida.
Maria sorriu
novamente. O amor estava explicito em seu olhar. Mais uma vez, Cher sentiu-se
envergonhada. Maria a fazia se sentir assim. Como se tudo o que fizesse fosse
egoísta e egocêntrico. Não era uma boa sensação. Afastou aquelas ideias da
mente. Preferia continuar na sua esfera de felicidade sem enxergar nada além.
Mal sabia que logo a bolha seria estourada.
Voltou ao
próprio quarto.
Sentada na cama,
o violino ao lado, violão do outro. Caneta azul e caderninho à frente. Segurava
a cabeça como que para reter um pensamento. Treinara, durante a semana
anterior, escrever canções. Tinha ocorrido uma melhora satisfatória em suas
letras, porém as notas continuavam desencaixadas. Ela não conseguia organizar
as ideias de modo a deixar letra e música em perfeita harmonia. Sua mente
objetiva não permitiria uma desordem. Entretanto, a parte complexa de seu ser
não admitia sentido no que fazia.
Soltou a
respiração pela boca. Releu os versos escritos no papel. Revisou as notas.
Pareciam piores à medida que o tempo passava. Era uma porcaria quando estavam
juntas. Talvez ela fosse apenas uma interprete. Não havia um verdadeiro dom
artístico em suas veias, apenas o saber. Em raros momentos como este, sentia a
falta da mãe.
Se Sara
estivesse ali, ajudaria nos arranjos, nas notas. Organizaria a emoção. Mas ela
estava morta e Charlotte não lamentava por isso. Pelo menos não o tempo
inteiro. É difícil chorar a morte de alguém quando está pessoa tentou
abandonar-lhe. Mesmo assim, não deixava de pensar que, quem sabe, a música já
não estaria pronta aquela altura.
Levantou-se. Foi
até a varanda. O sol do meio dia incidia sobre as flores abaixo. Era quente,
como nunca o era no inverno. Charlotte imaginou se aquilo era um sinal. Uma
pista qualquer sobre algo grandioso que aconteceria. Riu de si mesma pelas
baboseiras que pensava. Seria melhor comer algo. Sentia o estômago vazio. Quiçá
até conseguisse encontrar o erro no que escrevia. Virou as costas para o
recinto e desceu as escadas.
Comeu peixe.
Bebeu refrigerante. O pai não estava. Fora resolver algum problema de última
hora, dissera Maria. Almoçou, então, sozinha. Ela e os pensamentos. Foi um
momento tedioso e solitário. Charlotte odiava o tédio e a solidão. Faziam-na se
lembrar de quando tinha onze anos. Era uma garotinha feliz, mas sem nenhuma
outra amiga além de Blair. Blair. Foi ela quem fez Charlotte conhecer todas as
outras: Luna, Laura e Raquel. Até Vanessa, com quem estava tendo uma relação
conturbada, fora obra de Blair.
Era incrível
como a vida de Charlotte estava atrelada a de Blair. Melhores amigas. O título
que davam a si: melhores amigas. Tudo mudou em um ano. Blair e Laura se
aproximaram. Raquel agora substituía Blair. Pensando sobre isso, Charlotte
percebeu o quanto a ex-melhor amiga fazia falta. Sentia saudades do tempo em
que sentavam na cama dela e contavam sobre seus sentimentos. Agora Raquel era a
dona daquele canto na cabeceira. Achou incrível e doloroso como a vida podia
mudar em tão curto espaço de tempo.
Limpou os lábios
com o guardanapo. Pôs o prato e os talheres na pia. Benjamin ainda não chegara.
A casa permanecia quieta e taciturna. Sentiu certo alivio ao visualizar o
relógio no próprio pulso. Faltava uma hora. Logo as meninas chegariam. O
silêncio agonizante enfim teria um fim.
Deu-se conta de
que precisava se arrumar. Passando pela sala, viu que Maria havia deixado tudo
pronto. A mesinha de centro estava repleta de bandejas, copos e canecas. O
tapete havia sido retirado do local. No lugar estavam vários colchonetes e
cobertores. Alguns travesseiros e almofadas bonitas enfeitavam o ambiente
acolhedor. Faltavam apenas os filmes, mas estes estavam em seu quarto. Sorriu
satisfeita. Maria era ótima em todas as suas ações.
Foi tomar um
banho. A água quente relaxou seu corpo, livrando-a de uma tensão que nem sabia
possuir. O espelho do banheiro estava embaçado e seu cabelo molhado. Enxugou o
rosto com a toalha branca antes de sair do boxe.
Encontrou Luna
recostada na cama. Lia algo. Percebeu que era o caderninho com os versos de
música. Charlotte entrou em pânico. Ali estavam escritos seus mais secretos
sentimentos. Os que não tinha coragem de revelar a ninguém. Subitamente, tomou
o caderno das mãos de Luna. A mão úmida marcando as páginas, a toalha
escorregando de seu corpo. Segurava aqueles papéis unidos com uma força
protetora que beirava ao constrangimento.
— Não deveria
estar lendo isso! — exclamou meio encolerizada, meio envergonhada.
— Desculpe! —
Luna respondeu solenemente — A Maria disse que eu podia subir e encontrei esse
caderno aberto. Não pensei que era, sei lá, seu diário.
— Não é meu
diário. — Charlotte garantiu.
— Ah, ainda bem
— respirou aliviada — Pensei que estivesse apaixonada pelo Caíque.
Luna havia lido
os versos românticos. E havia pensado que se referiam a Caíque. O mesmo que não
ligou no dia seguinte. Que fingiu não conhecê-la quando se encontraram
casualmente outro dia. Alguém por quem Charlotte não poderia nutrir qualquer
tipo de sentimento. Exceto o desprezo. E Luna queria garantir isso. Portanto,
ao imaginar a possível existência de um sentimento maior, aterrorizou-se
internamente. Entretanto, os versos eram inspirados em um filme romântico
qualquer. Quiçá por isso Charlotte não achava possível terminá-la: os
sentimentos ali contidos não eram seus, mas de outrem. Letra e melodia eram
superficiais.
— Ugh! —
Charlotte fez uma careta — Nunca!
As duas
gargalharam.
— Acho que vou
me trocar — Charlotte voltou ao banheiro, quebrando o momento de leveza.
Luna e Cher
permanecerão no quarto ouvindo música e conversando, até a campainha tocar.
Vieram em fila. Raquel, Laura e Blair. Vestiam uniformes: short e casaco de
moletom. Logo se esparramaram pela sala. A pipoca já estava pronta e o filme
fora posto. Entre gargalhadas e assuntos que surgiam como o vento forte em uma
tarde de verão, o cinema fora esquecido.
Eram cinco
adolescentes ali. Sem preocupações com a vida, apenas desejando a diversão. Não
sabiam onde estariam dentro de três anos, a única certeza era o agora.
Aproveitavam a sólida amizade, regada e cuidada por anos, enquanto ainda a
possuíam. Contudo, entre amigas, erros são cometidos. E erros hoje, podem
provar-se acertos amanhã.
Ele fora
proposto por Laura. Deveriam contar algum segredo. O beneficio daquela
brincadeira Charlotte só provaria dali a uns meses. O que aconteceria agora
seria a tua total desgraça. Pelo menos na mente de uma garota de quinze anos,
onde toda tragédia é ampliada. Mal da idade.
— Começa com
você, então... — Charlotte falou apontando para Laura.
— Por que eu?
— Porque foi
você quem sugeriu, oras! — Raquel deu a resposta mais lógica.
— Tudo bem. —
ela anuiu — Eu marquei de me encontrar com um cara que conheci na Internet.
— O quê? — Blair
parecia não acreditar na revelação.
— Ah, de boa —
Laura pegou um chocolate, despreocupada — Eu acabei não indo.
— Este não é um
final legal para uma história. — Charlotte observou. As outras meninas a
fitaram como se fosse louca.
— Então, que tal
você contar um segredo agora, Cher? — Laura perguntou, colocando um tom de
sarcasmo na voz.
— Tá — Charlotte
deu de ombros, pensando sobre o que deveria contar. Não conseguia encontrar
nada, até por fim desistir – Acho que não tenho nenhum segredo.
— Ah, mas eu
acho que você tem — Blair levantou-se repentinamente, o dedo em riste — Admita
que você queria ficar com o Alaric!
Alaric havia
sido colega delas na terceira série. Desapareceu e reapareceu. Na forma de um
menino bonito e popular... Que começou a conversar com Charlotte.
— Quem é Alaric?
— Luna perguntou perdida.
— É o garoto que
ela dispensou na festa de maio. — Blair respondeu.
— Não acredito!
— agora fora Raquel quem levantara — Depois de toda aquela conversa... Vocês
juntos... O trabalho que tive... Por que não me falou?
Charlotte
enrubesceu. Tinha marcado de se encontrar com Alaric em uma festa. Quando o
viu, de blusa vermelha e jeans, não conseguiu resistir ao impulso de fugir.
Correu para onde uma multidão ajuntava-se e dali partiu para o banheiro. Ao
sair de lá, deu de cara com as amigas dele. Duas garotas bonitas que a
carregaram até o local onde Alaric estava. A ironia era que Carolina não sabia
da relação entre Alaric e Charlotte.
Encará-lo,
entretanto, não foi mais fácil. A chegada de Raquel à rodinha foi um alívio...
E um tormento. Raquel tentava pôr os dois na mesma conversa. Charlotte queria
ir para casa. Não poderia continuar naquele ambiente. Quanto mais olhava para
Alaric, pior se sentia. Algo naquele garoto a fazia tremer. Não de um jeito
ruim, mas era algo assustador.
Suas pernas
estavam bambas, a boca seca, o coração acelerado. Nada parecia normal. Naquele
momento, Charlotte sentiu um medo delirante de se apaixonar. A única coisa que
Charlotte conseguiu fazer foi cerrar os punhos e puxar Raquel para um canto.
Disse que não estava se sentindo bem e foi embora.
— Bom, eu não
disse que tinha ficado... – Che deu de ombros.
— Mas deu a
entender! – Raquel gritou.
Então Laura
levantou-se, numa pose séria.
— Você admite
que se arrependeu de ter dado o fora nele, Charlotte Tissou?
— Não é bem
arrependimento... – Cher começou a dizer, mas Blair a olhou ameaçadoramente –
Ah! Tudo bem. Eu me arrependi.
E com uma
piscadela, Laura declarou:
— Talvez ainda
haja uma maneira de contornar a situação.
© 2014 MULTI TV