quinta-feira, 24 de abril de 2014

CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 4



Capítulo Quatro

Uma Lembrança do Passado



Sara Tissou, em uma manhã ensolarada e bonita, saiu para trabalhar. Não voltou mais. Charlotte completara doze anos no dia anterior. Lembrava-se de que quando o policial entrou na sala cheia de quadros pintados pela mãe e ela acreditara que fora um terrível engano.

Provavelmente existiam muitas Saras, com sobrenome Tissou e que dirigiam um carro prata por aí. No entanto, ela sabia que estava apenas se enganando. Era a sua mãe quem estava naquele carro, com uma mala de roupas e uma bolsa cheia de dinheiro vivo. Era a sua mãe quem iria fugir da família para algum lugar desconhecido e intocável. Era a sua mãe quem iria abandoná-la e que apenas não o fizera porque fora impedida por um motorista de caminhão dormindo ao volante. Simples assim.

Recordava-se de buscar em sua memória alguma dor parecida com aquela que sentia no momento. Algo que pudesse ser comparado com a avalanche de sentimentos que se apoderavam de seu âmago. Raiva. Tristeza. Desespero. Solidão. Um mar de coisas desconhecidas flutuando dentro de si e corroendo tudo o que encontrava.

Ela imaginava que o pai também não acreditara, até que não houvesse mais alternativa. Gostava de pensar que ele mantivera uma leve esperança – assim como ela o fazia todas as noites, mesmo após se passarem anos desde o incidente – da cena toda ter sido interpretada erroneamente. Às vezes, chegava a ter certeza. Principalmente quando recordava o modo que ele dera a noticia a Clair: dizendo que Sara havia sofrido um acidente numa viagem a trabalho.

Aliás, após a visita do policial, Charlotte passou a chamar a mãe pelo primeiro nome. Sempre Sara. Isso porque nunca conseguira encontrar os “porquês” da situação; o verdadeiro motivo para a mãe tomar tal atitude. Exteriorizar a raiva, chamando-a pelo nome, era a melhor forma de esquecer o fato. Mesmo que o amor incondicional ainda estivesse ali, guardado na alma, e fosse imposto quando estava segura dentro de seu mundinho de sonhos.

Apenas nos recônditos cantos de sua mente ela continuava a ser a mãe amável que sempre fora.

Mas remoer acontecimentos antigos não levaria Charlotte a lugar algum. E recordar-se de algo que sempre a fazia sofrer, mais do que ela admitiria alguma vez, era doloroso. Então, forçou sua mente a expurgar os pensamentos que teimavam invadi-la. Fechou os olhos enquanto corria para o quarto, bloqueando o passado de sua consciência.

A porta se fechou com um baque atrás dela enquanto se jogava na cama macia. Uma lágrima brotou no canto do olho. Fazia bastante tempo que não chorava. Quase um ano. A última vez foi quando brigara com Blair e se irritara o bastante para não controlar as próprias emoções. Algo ligeiramente incomum para Charlotte, que era completamente ponderada.

A lágrima desceu pela face pálida e chegou aos lábios. O gosto salgado era familiar, mesmo após o longo tempo que não o sentira. Levantou da cama e pegou o violino. Foi até a varanda e começou a tocá-lo, sentada no chão. Era um hábito antigo. Sempre que estava confusa ou irada demais para falar, tocava sentada no chão da varanda do quarto. Envolveu-se tanto com a música que não ouviu o pai aproximar-se.

- É uma bela canção – Benjamin sentou ao seu lado, afagando seus cabelos – essa de Debussy.

- A Sara costumava tocá-la para eu dormir – ela olhou para o pai, tentando enxergar além da máscara de felicidade que ele aprendeu a vestir nos últimos infelizes anos.

- Eu sei – ele respondeu, observando um horizonte que existia apenas na imaginação dele – E foi a primeira música que aprendeu a tocar. – Benjamin voltou o rosto para a filha – Clair de Lune. – Disse o nome saboreando-o, como se fosse algo extremamente saboroso que não experimentava há muito tempo.

- Por que ela era tão boa em tudo? – quis saber – A mamãe, quero dizer.

Esta era a primeira vez que Charlotte chamava Sara de “mamãe” desde sua morte. E isso não passou despercebido a Benjamin. Ele deu um sorriso enigmático e suspirou antes de responder:

- Porque ela era igualzinha a você – beijou a testa da filha e levantou-se. Quando já estava perto da porta, avisou: - Você tem visita. Na sala. Mandei subir.

Charlotte permaneceu estupefata, por alguns segundos, com a resposta do pai. Nunca se achara parecida, em nenhum aspecto, com Sara – Clair é quem sempre fora a imagem e semelhança da mãe. E também nunca o desejara. Ou será que era esse seu querer secreto? Tão secreto que nem mesmo ela percebera?

“Não, não quero me parecer com ela”, decidiu. E, por ter decidido, assim seria. Pelo menos para si.

Contudo, continuou a ruminar a frase do pai. Mergulhou tão fundo em seus pensamentos que se esqueceu do aviso de Benjamin. Sobre a visita. E tomou um susto quando, ao entrar novamente no quarto, encontrou Blair deitada na sua cama.



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