segunda-feira, 28 de abril de 2014

CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 6


Capítulo Seis
Caíque Ferreira

Ela já estava atrasada. Perdera a hora lendo as revistas em quadrinhos do Homem de Ferro e esquecera-se do incomodo compromisso. Se Maria não entrasse no quarto perguntando se queria comer algo antes de sair, ela passaria o resto da noite esparramada no tapete felpudo branco da irmã sem notar que deveria estar em outro lugar. Fazendo algo de que provavelmente se arrependeria dali a uns dias. Esquecimento que comprovava a eficácia do modo escolhido para se distrair das adversidades do dia.
Xingando, Charlotte levantou-se do chão e arrumou o melhor que pôde as revistas. Recusou o lanche que Maria oferecera e correu para o próprio quarto. Teria de escolher a melhor roupa o mais rápido possível. Em suma, uma tarefa impossível sem a ajuda das amigas. Charlotte não conseguia realizar nenhum tipo de tarefa quando percebia que estava sendo pressionada. Acabava por se angustiar perante a vontade extrema de agradar e fazia tudo as avessas.
Raquel, Luna, Laura e Blair já deveriam estar na festa, o que as impossibilitava de ajudá-la. Precisava de uma alternativa. Olhando para as araras de roupas tentou escolher uma peça bonita. Não iria se lembrar do que ocorreria dentro de algumas horas, mas queria ser lembrada.
É quando a irmã, com seus fios louros presos num rabo de cavalo alto, encosta o corpo vestido de preto na porta do cômodo, que Charlotte pensa em pedir ajuda a ela.
- Clair! – grita – Que roupa devo usar?
- Como eu vou saber? – Clair entrou no closet e começou a revirar as araras em busca de algo – Seu estilo é completamente diferente do meu! – Pegou um vestido de renda colorida e, com uma careta, colocou-o no lugar.
- Apenas monte algo legal, ok? – com um sorriso esperançoso, foi em busca de um perfume marcante o suficiente para a ocasião.
Meia hora mais tarde, de frente para o grande espelho de moldura dourada e já sozinha no closet, não reconheceu o próprio reflexo. Na superfície lisa estava refletida uma garota dez centímetros mais alta e três anos mais velha. Apesar da saia plissada, dos babados cor de ouro nos ombros ou do pequeno pingente de bailarina no pescoço – presente de quinze anos enviado pela madrinha, cuja vida passara viajando por países exóticos. Deixou um arquejo escapar pelos lábios vermelhos ao perceber quão bonita estava.
Quase tão bonita quanto à mamãe”, pensou e, num triste suspiro, pegou a bolsinha preta pendurada na borda do espelho. Saiu do closet e se dirigiu às escadas de degraus de aço. Ao tocar o corrimão, sentiu um arrepio na nuca. Estava perto, tão perto agora. E, incrivelmente, à proximidade do evento descobriu-se desejosa do beijo de Caíque. Algo inédito até então.
Seria esta a deixa para Charlotte iludir-se? Ou, quiçá, provar para si mesma que não era apenas mais um clichê obsoleto? Não importava. Queria apenas opugnar os recentes redemoinhos estomacais à própria guisa, o resto seria abjeção do ato. Um ato que, esperava ela, seria curiosamente excitante e a faria esquecer as partes ruins daquele dia.
- Atrasada... De novo! – Clair passou correndo por ela, os saltos do sapato batendo nos degraus e fazendo um toc toc insuportável.
- Na verdade eu... Ah! Deixa pra lá!
- Então, vai ficar parada aí para sempre? – a voz de Clair continha uma leve irritação – O papai vai ficar impaciente.
No momento em que ela parou de falar, o som de uma conhecida buzina estourou os tímpanos de Charlotte. Ela revirou os olhos, desceu as escadas e seguiu Clair até o carro do pai. O cheiro familiar de café e energético inundou Charlotte; não o sentia há tanto tempo. Um pontinho dentro dela iluminou-se confortavelmente com a percepção que acabara de ter: a incrível inconstância do mundo imersa em profunda monotonia. Sorriu. Recostou a cabeça no banco traseiro e apreciou a vista – as ruas escuras e desertas sempre a atraíram – enquanto Benjamin dirigia rumo à festa.
O relativo silêncio do percurso foi quebrado quando chegaram ao local da festa. Os carros estacionados pelos arredores estavam rodeados de adolescentes conversando. Jovens casais saiam de seus “esconderijos” com bocas rosadas e roupas amarrotadas. Dois seguranças guardavam o portão, permitindo a entrada apenas de convidados. Clair e Charlotte informaram o horário de termino do evento, saltaram do carro e ingressaram naquela balburdia eloquente.
A extensão do gramado estava abarrotada de pessoas. Meninos e meninas reunidos em grupo e tagarelando. A música enchia o ambiente e muitos corpos se mexiam, embalados por seu ritmo. À frente, no palco, eram feitas apresentações de dança. O bar encontrava-se quase vazio, três ou quatro ou cinco garotas desconhecidas permaneciam ali.
Enquanto equilibrava-se nas pontas dos pés buscando um vislumbre das amigas, Charlotte deparou-se, mais cedo do que seu refestelado coração previra, com Victor, Maurício e Caíque.
Os três garotos caminhavam na direção oposta à de Charlotte. Victor e Maurício sorriram para ela, ao passo que Caíque, num acesso de timidez, tentava passar despercebido. Tarde demais. Charlotte já o vira. E seu coração deu um salto fora do compasso. O sangue passou a correr mais rápido por suas finas veias. A tensão ribombava dentro dela, criando ecos em sua mente. Exteriormente, não havia nada que comprovasse o inexplicável estado de seus nervos.
Apenas sorriu de volta e continuou andando. Perdeu-se na multidão.  Clair sempre ao seu lado. Até encontrar os amigos. Então Charlotte se viu espremida em algum ponto entre o palco e uma máquina de refrigerantes. Sozinha. Pôs-se a rondar sem rumo. Chegou a imaginar que, perdida no fluxo de pessoas, acabaria livre do contrato assinado no impulso. Talvez desistissem de procurá-la – não tinha mais certeza quanto a querê-lo, ainda mais após o incidente ocorrido minutos antes. Como estava enganada.

Uma cabeleira ruiva, emoldurando um rosto branco, mal foi avistada e alguém segurou seu cotovelo. Foi um toque suave, entretanto suficiente para distraí-la. Na fração de segundo em que se virou para ver quem a chamava, perdeu Raquel de vista. Contudo, uma nova copainha aguardava-a. 


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