quarta-feira, 30 de abril de 2014

CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 8

Capítulo Oito
Uma tarde, alguns filmes
A manhã acompanhava o humor de Charlotte. Agradável. O sol não brilhava intensamente, possuía apenas um leve fulgor. A brisa era suave e o céu azul abrigava nuvens brancas. Apesar do inverno, o aroma era doce, meio floral. Era o tipo de manhã em que grandes coisas acontecem. Uma nova amizade eterna; o título de um campeonato; o amor da sua vida. Tudo isso pode ser achado em manhãs como essa.
Porém, quando os olhos são abertos, nada se espera. Charlotte olhou as horas e, em uma nota no celular, estava o encontro daquela tarde. Filme com as amigas. Luna, Laura, Blair e Raquel. Pipoca, refrigerante, brigadeiro e risadas. Uma comédia romântica embalando à tarde. Levantou-se.
Na varanda, o sol iluminava o rosto dela. Sentiu o calor por mais algum tempo antes de ir encontrar o pai. Clair havia dormido na casa de uma amiga qualquer. Seriam somente os dois hoje. Pai e primogênita relembrando o passado. Charlotte deu um longo suspiro de satisfação antes de descer.
— Bom dia papai!
— Bom dia Charlotte — Benjamin tirava algo do forno, e respondeu sem se virar.
Ele pôs a bandeja na frente de Charlotte. Brownies. Charlotte pegou um. Estava quente e a garota o soltou assim que seus dedos o tocaram. Soprando a pele avermelhada ela notou um estranho brilho no olhar do pai. Desde que voltara de viajem Benjamin Tissou andava estranho. Sorrindo pelos cantos, suspirando e cantando. Parecia um adolescente novamente.
— O que foi?
— Nada — Charlotte o fitava fixamente — Você está rindo — Observou.
— Um homem não pode mais rir? — cantarolou tirando algo da geladeira.
— Pode... — Charlotte estava cautelosa agora — Mas você está rindo demais!
Benjamin deu de ombros. Continuou a cantarolar e atirar coisas da geladeira. Queijos, sucos, frutas...
— Pai... — Charlotte chamou-o — Está acontecendo algo que eu deva saber?
— Defina algo.
— Não sei... Uma namorada...
Benjamin riu. Não. Gargalhou. Uma risada gostosa de se ouvir, mas que irritou Charlotte profundamente.
— Claro que não —  riu novamente — Acho que devemos jantar fora hoje à noite.
— Hoje a noite não vai dar. — Ela olhou-o pedindo desculpas — As meninas virão assistir aqui em casa pela tarde. Não sei que horas voltarão para casa. Talvez até durmam aqui.
Benjamin assentiu. Procurava, claramente, uma solução para a problemática. Descartava uma após a outra, segundo dizia seu olhar.
— Tudo bem. Façamos o seguinte — sentou-se e tentou manter uma pose casual — eu, você e a Clair. Amanhã à noite. Naquele seu restaurante favorito. Topa?
— É. Vai ser uma boa. — Charlotte deu um beijo no pai e saiu da cozinha, rumo ao quarto.
Uma vez lá dentro, sentou-se à mesa do computador. Abriu a página do Word e começou a digitar algo. Uma lista. Pipoca. Refrigerante. Petiscos. Brigadeiro. Filmes. Cobertores. Travesseiros. Imprimiu. Com um lápis, anotou no rodapé da página: “Não se esquecer de ligar a wifi”.
Dobrou a folha ao meio e desceu. Encontrou o pai na cozinha, ainda comendo.
— A Maria já chegou?
Maria era a governanta da casa. Uma mulher já idosa. Por volta dos sessenta anos, o fios brancos já rareando. Pequenina, fazia o papel de avó de Clair e Charlotte. Havia sido a babá de Charlotte e, até onde a garota sabia, trabalhava na casa antes mesmo de ela nascer. Cher e Clair conheciam-na desde sempre e não conseguiam imaginar a vida sem a senhora.
— Na biblioteca. Arrumando os livros. — Benjamin respondeu, e acrescentou quando Charlotte já estava saindo — Não sei onde ela acha tanta bagunça. Fissionada por arrumação aquela ali. Eu disse a Sara, mas ela me ouviu? Nãaao.
Cher riu e saiu, balançando a cabeça. O pai às vezes conseguia ser tão imaturo...
Encontrou Maria, não arrumando, mas lendo. Dom Quixote era o título do livro. Não queria interromper a leitura, mas precisava arrumar a casa. As amigas chegariam às 14h. Já eram 10h. E ela não fazia a menor ideia de como organizar uma reunião. Este tipo de encontro geralmente era feito na casa de Raquel. Mas o pai de Raquel estava de férias e nenhuma delas gostaria de incomodar o homem. Pigarreou para chamar a atenção de Maria.
— Ah, olá Charlotte — ela riu por sobre o grosso livro — Deseja alguma coisa?
A amabilidade da mulher deixou Charlotte envergonhada. Ela nunca reagiria assim a alguém que interrompesse uma atividade sua.
— Hã... Na verdade preciso que arrume isso para mim — entregou a folha branca.
— Hum... — Maria passou o olho pelo papel — Uma festinha?
— Mais ou menos — Charlotte respondeu evasivamente — Mas se eu estiver atrapalhando...
— Oh! Não. De maneira alguma. — passou as mãos pelo exemplar de Dom Quixote. — Miguel de Cervantes pode esperar um pouco enquanto arrumo as coisas para a minha querida.
Maria sorriu novamente. O amor estava explicito em seu olhar. Mais uma vez, Cher sentiu-se envergonhada. Maria a fazia se sentir assim. Como se tudo o que fizesse fosse egoísta e egocêntrico. Não era uma boa sensação. Afastou aquelas ideias da mente. Preferia continuar na sua esfera de felicidade sem enxergar nada além. Mal sabia que logo a bolha seria estourada.
Voltou ao próprio quarto.
Sentada na cama, o violino ao lado, violão do outro. Caneta azul e caderninho à frente. Segurava a cabeça como que para reter um pensamento. Treinara, durante a semana anterior, escrever canções. Tinha ocorrido uma melhora satisfatória em suas letras, porém as notas continuavam desencaixadas. Ela não conseguia organizar as ideias de modo a deixar letra e música em perfeita harmonia. Sua mente objetiva não permitiria uma desordem. Entretanto, a parte complexa de seu ser não admitia sentido no que fazia.
Soltou a respiração pela boca. Releu os versos escritos no papel. Revisou as notas. Pareciam piores à medida que o tempo passava. Era uma porcaria quando estavam juntas. Talvez ela fosse apenas uma interprete. Não havia um verdadeiro dom artístico em suas veias, apenas o saber. Em raros momentos como este, sentia a falta da mãe.
Se Sara estivesse ali, ajudaria nos arranjos, nas notas. Organizaria a emoção. Mas ela estava morta e Charlotte não lamentava por isso. Pelo menos não o tempo inteiro. É difícil chorar a morte de alguém quando está pessoa tentou abandonar-lhe. Mesmo assim, não deixava de pensar que, quem sabe, a música já não estaria pronta aquela altura.
Levantou-se. Foi até a varanda. O sol do meio dia incidia sobre as flores abaixo. Era quente, como nunca o era no inverno. Charlotte imaginou se aquilo era um sinal. Uma pista qualquer sobre algo grandioso que aconteceria. Riu de si mesma pelas baboseiras que pensava. Seria melhor comer algo. Sentia o estômago vazio. Quiçá até conseguisse encontrar o erro no que escrevia. Virou as costas para o recinto e desceu as escadas.
Comeu peixe. Bebeu refrigerante. O pai não estava. Fora resolver algum problema de última hora, dissera Maria. Almoçou, então, sozinha. Ela e os pensamentos. Foi um momento tedioso e solitário. Charlotte odiava o tédio e a solidão. Faziam-na se lembrar de quando tinha onze anos. Era uma garotinha feliz, mas sem nenhuma outra amiga além de Blair. Blair. Foi ela quem fez Charlotte conhecer todas as outras: Luna, Laura e Raquel. Até Vanessa, com quem estava tendo uma relação conturbada, fora obra de Blair.
Era incrível como a vida de Charlotte estava atrelada a de Blair. Melhores amigas. O título que davam a si: melhores amigas. Tudo mudou em um ano. Blair e Laura se aproximaram. Raquel agora substituía Blair. Pensando sobre isso, Charlotte percebeu o quanto a ex-melhor amiga fazia falta. Sentia saudades do tempo em que sentavam na cama dela e contavam sobre seus sentimentos. Agora Raquel era a dona daquele canto na cabeceira. Achou incrível e doloroso como a vida podia mudar em tão curto espaço de tempo.
Limpou os lábios com o guardanapo. Pôs o prato e os talheres na pia. Benjamin ainda não chegara. A casa permanecia quieta e taciturna. Sentiu certo alivio ao visualizar o relógio no próprio pulso. Faltava uma hora. Logo as meninas chegariam. O silêncio agonizante enfim teria um fim.
Deu-se conta de que precisava se arrumar. Passando pela sala, viu que Maria havia deixado tudo pronto. A mesinha de centro estava repleta de bandejas, copos e canecas. O tapete havia sido retirado do local. No lugar estavam vários colchonetes e cobertores. Alguns travesseiros e almofadas bonitas enfeitavam o ambiente acolhedor. Faltavam apenas os filmes, mas estes estavam em seu quarto. Sorriu satisfeita. Maria era ótima em todas as suas ações.
Foi tomar um banho. A água quente relaxou seu corpo, livrando-a de uma tensão que nem sabia possuir. O espelho do banheiro estava embaçado e seu cabelo molhado. Enxugou o rosto com a toalha branca antes de sair do boxe.
Encontrou Luna recostada na cama. Lia algo. Percebeu que era o caderninho com os versos de música. Charlotte entrou em pânico. Ali estavam escritos seus mais secretos sentimentos. Os que não tinha coragem de revelar a ninguém. Subitamente, tomou o caderno das mãos de Luna. A mão úmida marcando as páginas, a toalha escorregando de seu corpo. Segurava aqueles papéis unidos com uma força protetora que beirava ao constrangimento.
— Não deveria estar lendo isso! — exclamou meio encolerizada, meio envergonhada.
— Desculpe! — Luna respondeu solenemente — A Maria disse que eu podia subir e encontrei esse caderno aberto. Não pensei que era, sei lá, seu diário.
— Não é meu diário. — Charlotte garantiu.
— Ah, ainda bem — respirou aliviada — Pensei que estivesse apaixonada pelo Caíque.
Luna havia lido os versos românticos. E havia pensado que se referiam a Caíque. O mesmo que não ligou no dia seguinte. Que fingiu não conhecê-la quando se encontraram casualmente outro dia. Alguém por quem Charlotte não poderia nutrir qualquer tipo de sentimento. Exceto o desprezo. E Luna queria garantir isso. Portanto, ao imaginar a possível existência de um sentimento maior, aterrorizou-se internamente. Entretanto, os versos eram inspirados em um filme romântico qualquer. Quiçá por isso Charlotte não achava possível terminá-la: os sentimentos ali contidos não eram seus, mas de outrem. Letra e melodia eram superficiais.
— Ugh! — Charlotte fez uma careta — Nunca!
As duas gargalharam.
— Acho que vou me trocar — Charlotte voltou ao banheiro, quebrando o momento de leveza.

Luna e Cher permanecerão no quarto ouvindo música e conversando, até a campainha tocar. Vieram em fila. Raquel, Laura e Blair. Vestiam uniformes: short e casaco de moletom. Logo se esparramaram pela sala. A pipoca já estava pronta e o filme fora posto. Entre gargalhadas e assuntos que surgiam como o vento forte em uma tarde de verão, o cinema fora esquecido.
Eram cinco adolescentes ali. Sem preocupações com a vida, apenas desejando a diversão. Não sabiam onde estariam dentro de três anos, a única certeza era o agora. Aproveitavam a sólida amizade, regada e cuidada por anos, enquanto ainda a possuíam. Contudo, entre amigas, erros são cometidos. E erros hoje, podem provar-se acertos amanhã.
Ele fora proposto por Laura. Deveriam contar algum segredo. O beneficio daquela brincadeira Charlotte só provaria dali a uns meses. O que aconteceria agora seria a tua total desgraça. Pelo menos na mente de uma garota de quinze anos, onde toda tragédia é ampliada. Mal da idade.
— Começa com você, então... — Charlotte falou apontando para Laura.
— Por que eu?
— Porque foi você quem sugeriu, oras! — Raquel deu a resposta mais lógica.
— Tudo bem. — ela anuiu — Eu marquei de me encontrar com um cara que conheci na Internet.
— O quê? — Blair parecia não acreditar na revelação.
— Ah, de boa — Laura pegou um chocolate, despreocupada — Eu acabei não indo.
— Este não é um final legal para uma história. — Charlotte observou. As outras meninas a fitaram como se fosse louca.
— Então, que tal você contar um segredo agora, Cher? — Laura perguntou, colocando um tom de sarcasmo na voz.
— Tá — Charlotte deu de ombros, pensando sobre o que deveria contar. Não conseguia encontrar nada, até por fim desistir – Acho que não tenho nenhum segredo.
— Ah, mas eu acho que você tem — Blair levantou-se repentinamente, o dedo em riste — Admita que você queria ficar com o Alaric!
Alaric havia sido colega delas na terceira série. Desapareceu e reapareceu. Na forma de um menino bonito e popular... Que começou a conversar com Charlotte.
— Quem é Alaric? — Luna perguntou perdida.
— É o garoto que ela dispensou na festa de maio. — Blair respondeu.
— Não acredito! — agora fora Raquel quem levantara — Depois de toda aquela conversa... Vocês juntos... O trabalho que tive... Por que não me falou?
Charlotte enrubesceu. Tinha marcado de se encontrar com Alaric em uma festa. Quando o viu, de blusa vermelha e jeans, não conseguiu resistir ao impulso de fugir. Correu para onde uma multidão ajuntava-se e dali partiu para o banheiro. Ao sair de lá, deu de cara com as amigas dele. Duas garotas bonitas que a carregaram até o local onde Alaric estava. A ironia era que Carolina não sabia da relação entre Alaric e Charlotte.
Encará-lo, entretanto, não foi mais fácil. A chegada de Raquel à rodinha foi um alívio... E um tormento. Raquel tentava pôr os dois na mesma conversa. Charlotte queria ir para casa. Não poderia continuar naquele ambiente. Quanto mais olhava para Alaric, pior se sentia. Algo naquele garoto a fazia tremer. Não de um jeito ruim, mas era algo assustador.
Suas pernas estavam bambas, a boca seca, o coração acelerado. Nada parecia normal. Naquele momento, Charlotte sentiu um medo delirante de se apaixonar. A única coisa que Charlotte conseguiu fazer foi cerrar os punhos e puxar Raquel para um canto. Disse que não estava se sentindo bem e foi embora.
— Bom, eu não disse que tinha ficado... – Che deu de ombros.
— Mas deu a entender! – Raquel gritou.
Então Laura levantou-se, numa pose séria.
— Você admite que se arrependeu de ter dado o fora nele, Charlotte Tissou?
— Não é bem arrependimento... – Cher começou a dizer, mas Blair a olhou ameaçadoramente – Ah! Tudo bem. Eu me arrependi.
E com uma piscadela, Laura declarou:
— Talvez ainda haja uma maneira de contornar a situação.


© 2014 MULTI TV

0 comentários:

Postar um comentário