quarta-feira, 23 de abril de 2014

CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 3



Capítulo Três

Ela se foi



Joane a esperava no batente da porta. Os cabelos louros pendiam numa trança propositalmente bagunçada e a mochila de estampa gráfica, casualmente recostada em seus pés, dava-lhe um ar meio glamouroso, meio rebelde. Havia um sorriso escondido pelos fios longos que caiam, soltos, em seu rosto. Hoje, estava sem os óculos que lhe era tão característico, mesmo assim conseguia ver o cenho franzido e as sobrancelhas unidas de Charlotte. A dúvida inerente e inconcebível tornava inconclusa a última atividade da Cher antes do recesso de duas semanas, já chegado a todos menos a ela. Charlotte buscava, desesperadamente, ver suas dúvidas sanadas e, de forma latente, procurava a resposta pelo cômodo vazio. Os olhos das duas garotas se cruzaram. Os dois pares azuis encostados no batente da porta pintada nos tons da melancolia deixavam escapar, em seu fulgor, o dúbio motivo da visita, entretanto, Charlotte, absorta em seu problema bimestral, ignorava qualquer indicio da enrascada que viria acometê-la.

Quando, enfim, desistiu de resolver a ultima questão da prova, percebeu Joane ali, esperando-a. Algo dentro de si deu o alerta: “Não saia! Não saia!”. Relutou, então, em entregá-la porque não queria falar com Joane e acreditava que, caso demorasse tempo suficiente, Joane desistiria e iria embora. Estava errada. Joane estava decidida a abordá-la. Esperaria até o fim do tempo estipulado, se preciso fosse. O bom senso de Charlotte venceu. Ela saiu da sala e Joane a seguiu.

Sentada em um dos degraus, encontraram Blair, com uma bolsa rosa no colo. Aguardava-as com um sorriso enigmático no rosto, como se estivesse prestes a fazer algo errado e muito, muito divertido, simultaneamente. Levantou-se subitamente e agarrou o pulso de Charlotte, levando-a para o andar de baixo e descendo mais ainda. O Instituto era um colégio grande e antigo de modo que dispunha de muitas escadas, andares e locais escondidos que a maioria dos alunos não conhecia. Contudo, o passatempo favorito de Charlotte e sua turma, na infância, era explorar aquele lugarzinho onde passavam a maior parte do tempo. Deste modo, conheciam cada canto daquilo que mais parecia um grande castelo medieval que uma escola de renome.

Blair parou quando a escada que levava ao térreo se alargava. Havia ali uma porta que conduzia ao armário de equipamentos esportivos antiquados – fazia parte da política da escola nunca jogar algo útil fora. Empurrou Charlotte lá para dentro, Joane logo atrás, e fechou a porta. Mesmo no escuro era possível perceber seus olhos brilhando maliciosamente. O fulgor, mesclado à aura ruiva que lhe cercava o crânio, dava-lhe um estranho aspecto de anjo e demônio, como se aquela garota pudesse lhe amar intensamente e, no instante seguinte, te matar de forma cruel e dolorosa. Um paradoxo maravilhoso que sempre intrigara Charlotte e despertara a fascinação em Joane. E ali, naquele armário escuro, o efeito era, além de intensificado, avassalador.

- Já contou a ela?

Charlotte abriu a boca para responder “Contei o quê?”, quando percebeu que a pergunta fora feita a Joane.

- Ainda não... Estava te esperando. – Joane lançou um olhar cúmplice a Blair. Evidentemente possuíam algum segredo em comum que envolvia Charlotte, entretanto, esta não fazia a menor ideia do quê elas poderiam estar escondendo.

- Você nem introduziu o assunto? – Blair perguntou daquele jeitinho ansioso dela que a fazia parecer uma criança extremamente dócil.

- Já disse que estava esperando você.

Blair soltou o ar pela boca em sinal de frustração.

- Peraí! Vocês podem me dizer o que está acontecendo? – Charlotte interrompeu o estranho dialogo já irritada por ser deixada de fora de algo que, de maneira gritante, era sobre ela.

Blair e Joane entreolharam-se. Pareciam decidir sobre o modo como dariam a noticia. Havia uma ânsia em contar tudo no olhar das duas garotas que intrigava Charlotte quanto ao teor da informação. Era claro que estava relacionado a garotos. Conhecia Blair e Joane bem demais quanto a isso. Entretanto, era difícil dizer mais detalhes. Só restava rezar para não ser a volta de Samuel que anunciavam.

Uma semana depois de eles se beijarem, Samuel decidiu morar com o pai. Talvez tenha tido algo a ver com o fato de a Tess ter descoberto sobre a traição e tenha terminado com ele, mas Charlotte gostava de acreditar que o real motivo era a covardia dele: sem conseguir resolver o problema em que se metera, fugiu. Este pensamento a fazia rir quando se sentia uma vagabunda por ter ficado com um menino comprometido.

No entanto, o que suas amigas tanto escondiam nada tinha a ver com Samuel. O nome na mente delas era outro. A personalidade também. Os traços físicos eram o aspecto que mais diferenciavam esta nova pessoa da antiga. Caíque Ferreira era, provavelmente, o único garoto em todo o planeta capaz de fazer Charlotte Tissou se apaixonar. Simplesmente porque ele era aquele tipo de menino meio mórbido e ao mesmo tempo muito engraçado que sempre encantara Charlotte, mas que ela nunca conhecera. O tipo de cara que você quer ter como amigo e logo percebe que não o quer apenas como amigo. Talvez por ter isso em mente Charlotte se desequilibrou e quase caiu no chão frio e atulhado de bolas, cordas e outros objetos.

- É claro que não! – Assim que se recuperou da surpresa, a recusa foi imediata – Não! Não! E não! Nunca!

- Por que não? – Joane perguntou debilmente.

- Porque não oras!

- Mas ele ficou a madrugada inteira falando de você... Ele realmente gostou de você, Cher.

- E daí? Eu já disse não!

- Ai, você não está vendo que ela quer? – Blair ficou entra as duas, completamente irritada com a negação de Cher – Ela passou o último mês falando sobre como não deveria ter dado um fora naquele garoto bonitinho da festa de maio. A Cher chegou a dizer que precisava de um namorado! Um N-A-M-O-R-A-D-O! Quando você já a ouviu dizer isso? É claro que ela quer!

- Não quero não! E não disse nada disso! – Charlotte agora gritava. Seu rosto rubro mostrava a verdade das palavras de Blair, no entanto ninguém poderia vê-lo devido à escuridão do ambiente e ela sentiu-se aliviada por isso.

- Cher... – Joane segurava seu ombro e olhava no fundo de seus olhos, azul escuro contra âmbar – Caíque é um garoto legal. E você sempre achou a mesma coisa. Fica com ele, por favor?

Ela nunca conseguiu explicar, mas quando Joane a olhou sentiu que não saberia dizer não. E não acharia argumentos para justificar uma recusa. Exceto revelar o medo de se apaixonar alguém. O qual sempre escondera. Além disso, sempre gostara de Caíque; ele sempre a fazia rir. Contudo, ficar com ele era algo inimaginável para ela e, naquele momento, era o que estava sendo proposto. Sabia que se arrependeria em pouco tempo e teve de fechar os olhos para aceitar, temendo que algo em seu olhar a traísse. Para o bem ou para o mal.

- AHÁ! Eu sabia! – Blair girava e batia palmas com suas madeixas circundando-a.

- Vou falar com o Caíque. - Dito isso, Joane saiu da escuridão do minúsculo armário para a claridade do dia, seguida por Blair e Charlotte.

O sol brilhava mais intensamente agora que estava perto do meio-dia e a escola estava praticamente vazia. Algumas crianças de onze anos subiam e desciam correndo as escadas, outras jogavam bola na quadra do colégio e meninas brincavam de Barbie enquanto esperavam pela mãe. No meio delas estava Luna.

Era uma menina pequena, de rosto pequeno e delicado. Parecia, na maior parte das vezes, uma princesa fugida de algum conto de fadas que se adaptou muito bem a vida moderna. Contudo, a face servia apenas para enganar os desavisados. Luna era uma garota nem um pouco meiga e muito explosiva e impulsiva. Seus olhos, sempre sinceros, eram a única porta para esta personalidade arisca escondida por uma capa enjoativa. Porém, Charlotte se acostumara, nos anos que seguiram ao que se conheceram aos rompantes de Luna. Portanto, Luna muitas vezes esperava Charlotte na saída da escola, e iam juntas para casa. Assim, ela foi a primeira pessoa a saber sobre o Caíque e sobre as incertezas que Charlotte nutria a respeito dele. E foi Luna quem disse algo do qual a Cher sempre se lembraria, enquanto caminhavam de volta para casa:

- Se você não tem certeza, pare e pense. Depois que tomar um banho bem relaxante, tire um tempo para analisar seus sentimentos. Pode ser que você sinta alguma atração por ele e não tenha percebido ainda.

- É... Pode ser. – Charlotte estava pensativa, quase sem prestar atenção ao mundo a sua volta e dando vários esbarrões em pessoas que passavam.

Imersa em pensamentos, chegou a casa. Era uma propriedade de dois andares, moderna, com a maior parte das paredes de vidro e grandes janelas que permitiam ver a paisagem florida. Recentemente havia sido reformada. O chão, antes recoberto por tacos, agora estava todo em granito branco como gelo. As paredes estavam todas pintadas em cores gélidas e um grande tapete cobria a maior parte da sala. O sofá de canto ficava em frente a uma grande lareira elétrica que nunca era ligada. Cortinas creme cobriam as janelas que iam do teto ao chão e permitiam uma vista panorâmica do jardim da frente. Alguns castiçais e portas retratos enfeitavam a lareira e a mesinha de centro. Havia fotos de todos os membros da pequena família, em vários estágios da vida.

Charlotte logo subiu as escadas com andares de aço que levavam ao andar superior, onde ficavam os quartos e o pequeno cinema que o pai construíra na primavera. O quarto de Charlotte era... Aconchegante. Uma cama de ferro preta ficava de frente para a porta branca, acima dela havia um coração feito com fotos dela e de suas melhores amigas em momentos divertidos. De cada canto do teto pediam pequenas luzinhas amarelas e o papel de parede era azul, decorado com pássaros e gaiolas. Ao lado da cama estava uma escrivaninha; a foto dela e da mãe, o abajur e o livro que estava lendo no momento estavam sobre ela. Dentro das duas gavetas encontravam-se papéis, listas antigas de matemática e seu velho Ipod, junto a um emaranhado de fios de diferentes fones de ouvido, que ela utilizava antes de descobrir o headphone.

A mesa do computador era um caos total. Além do notebook, havia canetas e lembretes por todo o lado. Acima, várias pequenas molduras que abrigavam imagens de sombras, em uma ordem desordenada. Do lado oposto à mesinha estava a varanda, coberta apenas por uma cortina cor-de-rosa. No vão entre a parede e o computador, ficava o closet. Não era algo grande, entretanto não podia se dizer que era pequeno.

Uma grande estante de livros, um espelho de corpo apoiado na parede, algumas araras de roupas e duas prateleiras de sapatos tomavam a maior parte do espaço. Bem tímida, no cantinho mais escuro, se encontrava uma penteadeira branca, com toda a maquiagem que Charlotte possuía e todos os seus acessórios. Um corredor escuro estendia-se pelo espaço e, no fim dele, estava o banheiro da Charlotte, todo branco e confortável, se é que “confortável” era algo que se podia dizer de um banheiro. E foi para lá que a garota se dirigiu. Iria seguir o conselho da Luna.

Quando abriu a ducha a água estava fervendo. “Perfeito”, pensou.

- Vamos lá, Cher! Pense. Pense. Pense e pense. – falou para si mesma – O que você quer?

Charlotte refletiu sobre Caíque, debaixo da água quente por minutos a fio, quase uma hora. E, quando o chuveiro já soltava fumaça e o espelho estava completamente embaçado pelo vapor, ela desistiu. Não chegara a conclusão alguma. E ainda sentia fome. Decidiu que ruminar qualquer coisa sobre a própria vida não funcionava com ela. Saiu do banheiro e vestiu uma roupa qualquer; os cabelos deixando grandes manchas de água na blusa vermelha e foi em direção à cozinha.

A cozinha, um cômodo grande e branco, no estilo americano, estava imersa numa completa balbúrdia de pratos, talheres, panelas e odores. Benjamin Tissou encontrava-se de pé, junto ao fogão, cozinhando algo. Clair inclinava-se sobre o balcão, tentando ver o que o pai preparava. Aquela cena, tão comum quando era criança, tornara-se excessivamente rara depois que ela e a irmã entraram na adolescência, tão rara que Charlotte deixou o queixo cair por uns instantes antes de se recompor e correr até Benjamin.

- Papai! – abraçou-o por detrás, tentando não atrapalhar o feito dele – Não sabia que voltaria hoje...

- Cheguei ontem à noite e não quis acordá-las – o Sr. Tissou se desculpou. Charlotte sentou no balcão ao lado da irmã.

- Se não tivesse demorado tanto no banho saberia a mais tempo, Cher. – Clair deu-lhe um tapa na cabeça, brincando, como sempre faziam quando estavam os três reunidos e Charlotte dizia algo estúpido – Bom, eu começo!

- Começa o quê?!

- Verdade ou desafio, é claro – Clair deu-lhe outro tapa na cabeça. – Escolha logo Cher!

Charlotte revirou os olhos e escolheu verdade, como sempre fazia.

Verdade ou desafio era o jogo favorito da família. Jogavam quando viajavam, passeavam, assistiam algum filme numa noite de chuva ou quando Benjamin cozinhava para as filhas num sábado à tarde. E Charlotte, assim como o pai, procurava sempre escolher a verdade.

- Então... Por que demorou tanto no banho, Srta. Tissou?

- Ei! – Charlotte protestou – Isto não é uma pergunta!

- É sim!

- Não é!

- É sim, Charlotte – quem falava agora era o pai, em seu tom imperial que não permitia discussões – Lembre-se das regras.

Charlotte suspirou, irritada por ter perdido a briga.

- Estava refletindo. Foi um truque que a Luna me ensinou para... relaxar. – explicou meio a contragosto. Por mais que tivesse uma relação aberta com o pai, falar sobre o Caíque na frente dele a deixava incomodada.

- E sobre o quê você estava refletindo? – Clair inclinou-se um pouco para Charlotte, perdendo toda a atenção na comida que o pai preparava.

- Ei! Uma pergunta por vez. – toda a ironia que ela conhecia foi reunida naquela frase - Lembre-se das regras, irmã.

- Mas... - Clair procurava uma desculpa para desvendar os mistérios que geralmente cercavam a vida de Charlotte sem, entretanto, encontrar nenhuma. – Tudo bem... Sua vez.

Charlotte sorria, internamente, orgulhosa de seu triunfo perante a menina mais nova. Havia se passado muito tempo desde que ganhara uma briga com Clair e não se lembrava de o prazer ser tão grande. Preparava-se para inquiri-la sobre algo que martelava em sua mente há algumas semanas; sobre uns burburinhos que vinha ouvindo nos corredores do Instituto. Murmúrios nada agradáveis por sinal, pelo menos não para uma irmã ciumenta. No entanto, foi interrompida.

- Sinto muito Cher, mas a única “vez” disponível no momento é a de comer.

Benjamin sorriu do jeito que costumava fazer quando Charlotte tinha seis anos e ainda fazia aulas de balé. Não aquele meio sorriso, charmoso, fabricado para convencer os acionistas, mas aquele tipo de riso que chegava aos olhos, fazendo-os brilharem como o Sol. E Charlotte diria que era exatamente essa a aparência dos olhos do pai, se estes não fossem escuros como a noite. De repente, meio sem avisar, uma sensação ruim apoderou-se da boca do estômago dela. Aquela sensação que sempre vem quando o mundo está calmo demais; feliz demais. Ela não conseguia parar de pensar que tudo poderia desmoronar enquanto estivesse distraída aproveitando a vida.

Quando o pai pôs em cima do balcão da cozinha uma travessa com o spaghetti favorito da mãe, a sensação tomou corpo e dimensões desproporcionais. Repentinamente, perdeu a fome. Mais tarde se arrependeria, porém, naquele momento, não pensou em ignorar todos os sinais e jogar as evidências a um canto obscuro da mente. Apenas seguiu a correnteza de seus impulsos e levantou-se da mesa com uma expressão vazia no rosto, vestida para esconder o desprezo e a dor do símbolo da recuperação do pai. Ou pior, da perda eterna da mãe.



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