sexta-feira, 25 de abril de 2014
CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 5
Capítulo Cinco
Divagações Sobre Sara
O cabelo ruivo caia pela face perfeitamente maquiada. Os olhos castanhos, cobertos por uma grossa camada de delineador, estreitavam-se enquanto ela tentava ler uma das partituras de Charlotte. Blair estava com os pés, calçados numa bota negra de cano e salto altos, sobre a colcha limpa da cama. Ao levantar a cabeça, deparou-se com Charlotte acima dela. Os braços cruzados, a expressão zangada.
— Tire os pés da cama. — disse, em seu melhor tom imperativo.
Blair riu antes de abaixar os pés.
— Calma nervosinha... — pôs as partituras dentro da gaveta da escrivaninha antes de continuar: — Então, cadê a comida?
— Ai meu deus! Será que você só pensa em comida? — Charlotte falou, a raiva momentânea indo embora perante a distração.
— Não... — Blair gargalhou por alguns segundos antes de retomar a seriedade — Falando sério agora, cadê a comida?
Charlotte observou Blair como se quisesse compreender um ser completamente estranho. Balançou a cabeça, desistindo de tentar entender a amiga e as suas peculiaridades.
— Afinal, de que comida você está falando? — perguntou confusa, torcendo os fios castanhos desbostados.
Blair revirou os olhos antes de puxar a cadeira do computador e sentar com os pés sobre o notebook.
“Velhos hábitos nunca morrem”, pensou Charlotte.
— Bom, me corrija se eu estiver errada, mas — e ela abriu a mão, contando nos dedos — a) Temos uma festa para ir hoje à noite, b) você vai ficar com um menino hoje à noite também e c) esta é uma das festas mais aguardadas do mês. — Blair fitou Charlotte muito séria, como se estivesse prestes a dizer algo muito importante — É hora da Tarde de Preparo das Garotas!
Laura inventara a “Tarde de Preparo das Garotas” quando elas tinham doze anos e foram à primeira festa da vida de cada uma. Seria uma forma de se aproximarem e ficarem lindas, dissera ela na época. Tornou-se uma tradição ao longo dos anos de amizade. Ir à casa da Charlotte; ouvir música; pintar as unhas umas das outras; fazer penteados legais; comer. Tudo isso imortalizado pela mania que as pessoas têm de repetir sempre as mesmas coisas, na esperança de nunca esquecer nada.
Todavia, o hábito havia caído no esquecimento e há uns bons meses não o praticavam. Em outras palavras, Charlotte esquecera-se completamente dele.
— Não vai me dizer que...
— Ops... — Charlotte riu de canto; o riso que indicava que ela havia feito algo que não deveria.
— E aposto que não ligou para ninguém, não é? — Charlotte deu de ombros. Blair suspirou e pegou o celular. — O que seria de você sem mim, Srtª Tissou?
Meio sem perceber, Charlotte pegou o celular da mão da Blair e o pôs fora do alcance. Gostava da compainha de Raquel e Laura, porém, naquele momento, queria ficar só. Desejava refletir sobre as atitudes que a levaram até ali. E queria descobrir onde se parecia com Sara. Mais que isso, queria descobrir a Sara. Não a mãe, mas a mulher, a criança e, principalmente, a jovem. As histórias, os risos, os segredos e os erros. Os aspectos inerentes apenas a ela, que se tornaram hereditários; as heranças herdadas pela filha mais velha. Desejava ardentemente destrinchar a Sara que não conhecia e entender suas manias, seus pensamentos mais profundos. No entanto, antes de completar tal tarefa, precisava olhar para dentro. Observar todos os cantos de si mesma e se destrinchar. Se conhecer, entender, compreender. Algo que demandava reflexão. Era necessário ficar sozinha.
— Ei! — Blair pulou para pegar o aparelho de volta — Me devolva!
— Quero ficar sozinha. — Charlotte atirou as palavras antes que a coragem lhe faltasse.
— Como? — Blair parecia não ter entendido o que ouvira, ou não queria acreditar.
— Quero ficar sozinha. — Charlotte repetiu a frase novamente, bem devagar desta vez.
— Pensei que gostava de ficar comigo. — Blair fingiu ficar magoada. Apenas fingiu, porque a Blair nunca se chateava com nada.
— E eu gosto, mas... — Charlotte procurava as palavras certas. Não queria revelar o que acontecera minutos antes dela chegar, porém precisava falar a verdade. — Eu só... Preciso ficar sozinha. Preciso refletir... Sobre mim.
Blair sorriu. Uma reação totalmente diferente da que Charlotte imaginara. Ela acreditava que Blair brigaria; gritaria; xingaria por ela quebrar a “grande” tradição. Mas nunca, jamais, em tempo algum, pensara que seria esta a reação da amiga. Imprevisibilidade era mesmo o segundo sobrenome de Blair Bragança.
— Tudo bem. Já entendi. — ela deu um novo sorriso e, saindo do quarto, sussurrou: — Bom encontro, gatinha.
— O quê?! — Charlotte iria negar a afirmação, mas percebeu que não valeria a pena, então apenas revirou os olhos e sorriu de volta dando um tchauzinho com a mão.
Suspirou. Voltou para a cama. Sentiu vontade de tocar novamente. Mas não as velhas canções de sempre, e sim uma completamente nova. A composição nunca fora o seu forte. Era boa letrista, sabia disso, entretanto escolher a notas certas nunca fora um dom seu. Esse talento sempre pertencera a sua mãe. Era a distração delas quando o pai viajava para longínquos lugares e deixava as três sozinhas em casa.
Violino e piano eram os instrumentos de Sara. Benjamin também os tocava, apesar de preferir o violão. Os dois se conheceram, aliás, em um concerto de música clássica. Apaixonaram-se, casaram-se e tiveram duas filhas. Ensinaram-nas a gostar de música. Charlotte e Clair, assim que tiveram idade, foram matriculadas no balé. Charlotte logo sentiu vontade de aprender a tocar um instrumento. Violino e piano, como a mãe. Nunca o violão. Sempre quis se parecer com Sara.
Diferente de Clair. A irmã mais nova preferia músicas contemporâneas; instrumentos atuais. Guitarra, bateria, baixo... Clair ingressara nas aulas de todos eles, mas o único que conseguira dominar fora o violão. Igualzinho a Benjamin. Porém, as semelhanças entre pai e filha paravam por aí. Contrariando Clair, que era uma Sara mais nova. Os mesmos olhos castanhos; os mesmo fios loiros e finos; o mesmo rosto delicado. O mesmo sorriso genuíno que varria o inverno da alma dos que a cercavam. E não importava o que Charlotte fizesse, ela nunca conseguira imitar aquele sorriso.
Quando a mãe morreu, Charlotte decidiu que iria se aceitar. Não desejava ser igual aquela mulher. Nunca abandonaria um filho. Contudo, Benjamin atiçara uma chama dentro dela que estava prestes a se apagar para sempre. “Porque ela era igualzinha a você”, ele dissera. E tudo dentro da menina começou a mudar com aquela frase. Porque a vida inteira ela quis ser igual a Sara, mas a vida inteira se acostumou a ser diferente da Sara.
Agora, quando finalmente resolvera o dilema interior, e percebera que não queria ser como a mãe, dizem-lhe o contrário.
— Eu posso chorar agora?
Perguntou para o nada, no tom mais baixo que conseguiu, porque nunca aprendeu a sussurrar. Mas não importava. Nenhuma alma viva iria ouvi-la. Estava dentro de seu mundinho, trancada nele, com portas e janelas fechadas ao público. Procurando respostas a perguntas que não foram feitas. Buscando compreender o que tanto a afetava. Talvez fosse um conjunto de atos e consequências, erros e acertos, que a fragilizaram. E a vulnerabilidade insólita e fugaz julgou aquele momento corriqueiro ideal para se impor. Quiçá um drama bobo de uma garota adolescente.
— Tanto faz. — disse para si mesma, intentando afastar tudo aquilo daquela sua esfera de felicidade construída.
Levantou-se de um pulo. Poderia ter “alma de artista”, como Luna gostava de dizer, mas não era obrigada a sofrer por qualquer recordação triste que lhe viesse à memória. Muito menos por dilemas que teimavam em açoitá-la, vez por outra. Na ponta dos pés, seguiu até o quarto de Clair. Era o menor da casa, e o mais legal também.
Logo ao chegar era possível ver a cama e a janela enorme atrás dela. Um tapete branco cobria a maior parte do chão. Nas paredes, portas-retratos e estantes com livros. Um baú, poltronas e um vídeo game completavam a paisagem. No closet ficava as roupas, a penteadeira, o computador e, ao estilo do de Charlotte, o banheiro. Tudo isso num espaço circular e alegre. Às vezes, quando entrava ali, Charlotte se perguntava o porquê de não tê-lo escolhido.
Correu as vistas pelo ambiente procurando algo. Esboçou um sorriso quando encontrou a coleção de revistas em quadrinhos da irmã. Pegou as suas favoritas e jogou-se no chão do quarto.
© 2014 MULTI TV
About the Author
Simplest
Hello, I'm Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Nunc consectetur nulla id metus consequat convallis. Praesent fringilla nulla eget elit bibendum dictum.
0 comentários:
Postar um comentário