terça-feira, 22 de abril de 2014

CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 2




Capítulo Dois

A História de Samuel



A caridade, diziam por aí, alimentava o espírito e deixava as pessoas com uma sensação boa em algum ponto perto do estômago. Então por que a única coisa que Charlotte sentiu naquela tarde foi raiva absoluta das pessoas que estavam ao seu redor, da música clássica, da Broadway e, principalmente, de si mesma por ter se metido naquele caos? Provavelmente porque, mesmo esperando encontrar a pior apresentação possível entre aquelas estátuas chinesas de alguma dinastia antiga e aqueles tapetes persas, a jovem Tissou nunca imaginara que iria defrontar-se com nada.

Nada. A isso era resumida a apresentação do Le Défilé d’Ouverture, dali a uma semana exata, de sua equipe. Ou praticamente nada. Andy tivera a brilhante ideia de fazer algo epicamente dramático. Carol sugeriu que se inspirassem em algo da Broadway e alguém (até hoje uma alma desconhecida) sussurrou nos belos ouvidos daquela desestruturada turma que “O Fantasma da Ópera” seria a melhor ideia de todos os tempos. Viva! Mil vivas!

Não fosse o fato de nenhum deles saber a história do tal fantasma. E, assim, começou o árduo trabalho de Clair e Charlotte. Clair pesquisou um pouco sobre o conto e desenhou o cenário do desfile e, por alguma benção divina, dois dias antes da abertura oficial dos Jogos Estudantis, a equipe mais nova e inexperiente do Instituto de Aprendizagem para Moços e Moças de Paris tinha um desfile que ficaria marcado na história dos desfiles de abertura; se não fosse pelo seu caráter épico, pelo menos seria por ser demasiado desastroso e medonho.

Entretanto, aquelas tardes em que passara comendo nutella e assistindo repetidamente Elizabeth, Carter e Samuel realizarem os mesmos passos, servira para, não apenas ensiná-la a incrível arte da liderança – a efetiva liderança de um grupo – mas para avisá-la que seus dias de posse da imagem de uma garota quietinha e ingênua estavam no fim. E, anos mais tarde, refletindo sobre aqueles ridículos episódios, percebeu que todo os Jogos Estudantis serviram como uma grande advertência de que ela não nascera para ficar nas sombras. Por mais que tentasse com todo fervor que existia em seu interior, sua vida fora feita para ser exteriorizada. Sua alma tinha um ‘quê’ de celebridade e o brilho estava intrínseco em seu cerne. Alguns talentos simplesmente não podiam permanecer escondidos e o evento daquele meio de inverno fora a forma que o destino encontrou de mostrar isso ao mundo e a própria Charlotte.

Pela primeira vez em dois anos todo o colégio falava dela. Apostas eram feitas tendo como base seu passado e presente, adivinhado o seu futuro. Tamanha balburdia tivera origem num garoto bonito de olhos e cabelos negros, mais escuros que os fios de Charlotte - que a esta altura da vida já haviam ganhado um tom amarronzado. Seu nome era Samuel, o mesmo Samuel que ela tivera de ensinar a dançar valsa para o Le Défilé d’Ouverture. Ele sempre a recebia com um abraço e um sorriso que não chegava a seus olhos misteriosos e tentava engatar uma conversa, que era bem sabido, não teria futuro. Eram completamente opostos, e aí estava incluída a forma de se relacionarem com o mundo. Quiçá por isso Charlotte tenha se interassado nele, tanto quanto ele se interessara nela – mesmo que as formas de atração exercidas por cada um no outro tenham sido demasiado diferente. Charlotte sentia certo fascínio quase excessivo por tudo que obtivesse a capacidade de ser um espantoso desastre.

Sua relação platônica não durou muito após o término dos Jogos Estudantis, mesmo com seus colegas acreditando estarem eles tendo algum tipo de envolvimento secreto e romântico. Acabara, entretanto os abraços e sorrisos e conversas roubadas ao acaso após sua recusa, plenamente justificável, em ter algo realmente concreto com aquele garoto:

- Precisamos conversar. – uma menina alta de longos e cacheados cabelos roxos puxara-a para um lado no primeiro intervalo daquela semana – Em particular. – Acrescentou ao ver Rachel ao seu lado.

Vanessa levou Charlotte a uma sala vazia e desconhecida – havia muitas salas assim em colégios tradicionais de tamanho excessivo. Vanessa era, no mínimo, duas cabeças mais alta que Charlotte, porém, na penumbra da sala ela parecia mais uma criança no jardim de infância.

- Samuel. – falou de uma só vez o nome que estava arranhando sua garganta desde as sete horas daquela manhã – Ele quer ficar com você.

Era difícil dizer quem ficara mais chocada das duas. Vanessa dissera a frase numa careta que emitia claramente a sua raiva pelo fato de ser encarregada daquela tarefa. Sentira uma profunda mágoa quando Samuel lhe mandou uma mensagem com os dizeres:

“Estou afim daquela morena da sua sala. Fala de mim pra ela.”

De alguma maneira sentira um ciúme incontrolável. E uma raiva maior ainda. No entanto era sua melhor amiga, e possuía uma relação cordial com “a morena da sala dela”; podia-se dizer que até nutria algum tipo de sentimento bom em relação à menina, seria estranho negar-se a ajudá-lo. Tratou então de esconder a afeição por Samuel e foi direto ao ponto o mais rápido. E Charlotte notou que a conversa em particular fora rápida demais.

- Hã... – foram suas primeiras palavras; pela expressão de Vanessa, dizer “sim” a magoaria - Bem... Sinto muito, mas não posso.

- Por quê?

- Colégio... Provas... Estudos...

Aquela fora provavelmente a desculpa menos convincente que inventara, porém Vanessa a aceitou. Sabia que a garota de cabelo estranho gostava de algum jeito muito profundo, de Samuel. Percebera isso nos breves instantes iniciais da “conversa” particular das duas e não gostaria de magoá-la. Contudo, nem sempre os nossos desejos são atendidos. É preciso, para que a balança da fortuna fique equilibrada, um pouco de descontentamento. E descontentamento foi algo que não faltou a Charlotte no “Caso Samuel” – apelido que dera, junto às amigas, ao incidente futuro que ficaria marcado, se não para sempre, por longos meses, na vida de todas elas.

Foi no verão. Mês de novembro. Fim de ano. As férias tão sonhadas tinham chegado e nada melhor para aproveitar a suada liberdade que um final de semana na praia. Ou numa cidade praieira. Combinava mais com o estilo daquela turma que se despedia porque aquele fora o último ano deles juntos. Uma vida fora construída desde o jardim de infância ao lado daquelas pessoas e, para se separarem nada mais digno que algo divertido; alguma coisa realmente memorável, que ficasse cravado nas lembranças de cada aluno daquelas duas classes mesmo que passassem anos e anos. Uma última festa juntos. Para marcar o começo, não de uma etapa, mas de uma nova era.

Arrumaram as malas e às treze horas do dia vinte e um partiram. A única acompanhante adulta era a coordenadora de disciplina da escola que não impunha disciplina nenhuma a bem da verdade. Uma mulher alta, por volta do cinquenta anos, fios negros e as roupas das marcas mais caras. Nunca era vista sem um salto alto, uma bolsa clássica e pérolas no pescoço. A imagem da mulher bem sucedida e da alta classe de uma cidade do interior: era assim aquela mulher chamada Antonia Pellegrino. Porém, o conservadorismo dela não passava da aparência. Por dentro, estava um coração alegre e jovem que conquistava os alunos do Instituto com apenas um sorriso, apesar de ser a mais severa das mães quando cometiam erros. Talvez por isso tenham a escolhido. Diversão garantida e nenhum problema para atrapalhá-los.

Poupar dinheiro ao longo do ano foi uma ideia brilhante concebida pela Carol e administrada por Elizabeth; duas garotas intragáveis e extremamente inteligentes - Charlotte nunca gostara delas e nenhuma das duas se esforçara para mudara situação ao longo dos dez anos que estudaram juntas – que foram indispensáveis para a viagem ocorrer, convencendo a direção que um bando de adolescentes de quatorze anos não destruiria a cidade litorânea ou hotel em que fossem se hospedar, mesmo que a maior parte dos estragos materiais na escola fosse obra das pessoas que embarcariam naquela viagem. E por conta do valor obrigatório que cada aluno deveria pagar, conseguiram a quantia necessária para realizar todos os programas divertidos disponíveis em um daqueles lugares que justificam a famosa frase “O que acontece em Vegas, fica em Vegas!”. Não que a despedida deles fosse em Las Vegas, claro que não.

Enfim, foram os melhores dias do ano para Charlotte. Pela primeira vez ela conseguira organizar seu tempo a fim de ler, tocar e sair um pouco, sempre em compainha dos amigos. Porém, as pequenas horas roubadas em que tocava violino no jardim da pousada só existiram pelo fato dela não gostar de praia. Areia, sol e água do mar a irritavam. Grudavam no corpo e deixavam a pele com um feio tom avermelhado. Ainda eram as responsáveis pelo desbotamento de seus belos cachos. Os fios de Charlotte sempre foram negros como a noite, contudo, após uma temporada na praia, eles começaram a clarear chegando ao castanho médio, com nuances de cobre. Charlotte sempre amou o negrume dos fios, e quando viu o que aquele verão fizera a ela, uma antipatia apoderou-se de seu ser. A garota nunca mais voltara à praia depois do incidente.

Os fatos decorridos ao longo dos anos da vida de Charlotte não foram, entretanto, a única razão para a garota manter-se afastada daquele pedaço mais que tropical do seu país abençoado por Deus, onde apenas a alegria era permitida. O nome do motivo mais forte, que a impelia a tocar mais que nunca era Samuel. Ele agora namorava uma garota qualquer do colégio rival ao deles, porém era o tipo de menino que não deve ser atribuída confiança nenhuma. Charlotte tinha medo, muito medo, de não resistir às investidas do rapaz que se tornaram mais insistentes, longe das pessoas conhecidas. E sair por aí de biquíni seria uma forma a mais de provocação, ainda mais se fosse verdade o que diziam sobre ela, sobre se tratar de uma menina com um corpo realmente bonito. Preferia dedicar-se a uma tarefa prazerosa e sem riscos.

Naquela manhã, ultimo dia deles na cidadezinha, uma visita final a melhor parte do local fora agendada e mais uma vez Charlotte ficaria sozinha na pousada tocando alguma música de Mozart ou Strauss – gostava especialmente de Aschenbrödel (Cinderella), do segundo compositor. Entrementes, Samuel encarava aquele derradeiro momento como a ultima chance de conquistar a garota que há muito vinha lhe escapando e decidiu permanecer no hotel para, assim, abordar Charlotte sem ninguém por perto. Quem sabe ela não seria mais receptiva sem uma plateia para assisti-los? Não poderia estar mais enganado.

Todos já tinham partido quando encontrou a Charlotte sentada na grama, num canto afastado, onde havia apenas uma fonte e alguns lampiões que ainda ardiam; algumas partituras estavam ao redor, tocava violino. Decidiu se aproximar e observá-la por trás. Ao término da música, fez-lhe uma surpresa ao bater palmas. Ela virou-se apenas para vê-lo. Tentou ignorá-lo, porém não conseguia se concentrar com sua presença ali e a razão não era a raiva que sentia por ele ter invadido seu santuário sagrado e particular. Era a atração que sentia. Por mais que desconsiderasse o sentimento, não podia negá-lo quando estavam sozinhos, sem ninguém a observá-los. Não possuía a força necessária para isso. A única solução era, em meio aos erros que ia cometendo, confundindo as notas musicais, fingir que tudo ia bem.

Adotou a tática por cinco longos minutos. Minutos torturantes que testavam sua força de vontade e punha a prova sua capacidade de fazer a coisa certa. Até que finalmente, cansada daquele jogo de autocontrole, levantou-se bruscamente. Arrumou as partituras e, com o violino a tiracolo, preparou-se para ir até o quarto. E teria ido se não fosse impedida. Samuel segurou seu antebraço e puxou-a para si tão subitamente que todas as partituras caíram, obrigando Charlotte a abaixar-se para pegá-las. Samuel a observou com olhos cheios de indisfarçada luxuria; aquela menina incitava desejos nele que a própria namorada não conseguia despertar.

- Você toca bem. Muito bem na verdade. – Disse, desviando os olhos dela. Beijá-la a força acabaria com todas as suas chances, no entanto, o faria se continuasse a fitá-la.

Ela murmurou um “obrigada” e já ia dando um jeito de fugir dali quando ele a chamou novamente.

- Continue a tocar, por favor!

- Desde quando gosta de música clássica? – Ela o observou com um olhar penetrante e severo, esperando que Samuel a desmentisse.

- De música clássica não... – Samuel foi se aproximando dela, vencendo a pequena distância que Charlotte conseguira pôr entre eles – Mas de você tocando eu gosto... De você principalmente.

- Meu nome é Charlotte não Tess.

A ironia e o sarcasmo palpável na fala de Charlotte o deixaram ainda mais excitado. Podia ver que ela lutava para não deixar transparecer o quanto gostava da ideia de ficar com ele.

- Calma, garota! – Samuel riu enquanto levantava as mãos em sinal de rendição – Só quero conversar. Acho que ainda somos amigos, certo?

- E sobre o quê você quer conversar? – Ela ignorou a ultima parte da fala dele. Imaginava os amigos que seriam se dependesse dele.

- Ah, não sei... – pensou por um momento – E se você me explicasse por que não foi à praia uma única vez desde que chegamos?

- Como sabe que não fui?

Charlotte sabia muito bem aonde ele queria chegar. Samuel era, acima de tudo, um conquistador arrogante, jamais admitiria o fato de uma garota não o querer e estava determinado a fazê-la confessar seus sentimentos acerca dele. Entretanto, Charlotte aprendera a ser orgulhosa. Jogaria o mesmo jogo que ele.

- Posso ter ido à uma praia diferente depois de terem saído.

- Vocês só sairão em minha compainha e com a minha autorização. – A imitação de Antonia Pellegrini beirou a perfeição e escondia um grande aviso.

- Tudo bem. Você venceu. Fiquei aqui o tempo inteiro. Posso ir agora?

- Não. – um sorriso alargou-se na face de Samuel – Ainda faltam as explicações.

Charlotte suspirou e torceu por sua voz não falhar.

- Não gosto de praia. Muito sol e muita areia em um lugar só. – deu de ombros casualmente, ou ao menos esperou que aparentasse casualidade – Mais alguma coisa?

- Sim.

Ele aproximou ainda mais o próprio rosto de Charlotte, fazendo-a acreditar que seria beijada e quando ela desviou um pouco a face, Samuel soltou uma gargalhada interior. Os lábios dele tocaram o ouvido dela. Charlotte podia sentir a respiração dele em seu pescoço e quase deu um pulo quando, com um fio de voz muito baixa e sensual, ele lhe pediu um conselho.

- Briguei com a Tess – Justificou.

O interior de Charlotte era, naquele momento, uma mescla de sentimentos. Ira e medo impregnavam-se em cada poro de seu corpo. Sentia necessidade de esbofetear Samuel, porém se o fizesse admitiria que sentia atração por ele. Tentou manter-se impassível, no entanto tinha a leve impressão que Samuel percebia tudo o que se passava em seu interior. E pior: podia enxergar através da máscara que eram seus olhos cor de âmbar.

- Não conheço a Tess para lhe dizer qual o melhor caminho a tomar. Se eu fosse você perguntaria a alguma amiga dela, não a mim.

- Calma Cher... Eu...

Charlotte nunca soube o que Samuel iria dizer. Uma música conhecida e desafinada ribombou pelos ares e os amigos de ambos apareceram. Carter levou Samuel para longe, deixando Charlotte grata e aliviada. Ela caminhou na direção oposta a dos meninos, procurando pelas amigas.

Rachel, Laura e Blair trajavam apenas biquíni e chinelo de dedo e conservavam uma espessa camada de areia da cabeça aos pés. Rachel e Blair tinham seus longos cabelos ruivos presos. Blair porque não suportava vê-los sujos, fosse de água salgada ou areia, e Rachel porque possuía os fios cacheados e finos. Laura caminhava com as madeixas louras soltas ao vento, sem se importar muito que aparência deveria ter. Vinham rindo de alguma piada que alguém contara e correram ao avistar Charlotte. Foi Laura quem percebeu que havia algo errado. Soube assim que seus olhos, duas grandes bolas verdes sempre a sorrir, encontram os de Cher. Correu até ela e a abraçou.

Charlotte tremia. Apenas quando Laura a rodeou com seus finos braços percebeu o quanto estava nervosa e o tamanho de sua raiva. Passara por uma pressão psicológica gigante. Não foi um mero exercício de autocontrole como queria se covencer. Foi muito mais. Logo ouviu os sons de alguns objetos sendo jogados ao chão e mais braços ao redor de sua cintura e ombros. Rachel era a única que tinha uma vaga noção sobre o seu dilema com Samuel. As outras duas só sabiam o que viram: abraços e troca de olhares no, agora tão distantes, Jogos Estudantis. Talvez fosse a hora de desabafar. Precisava do apoio das amigas para resistir ao garoto. Não gostava o que implicava beijar um menino que, além de comprometido, era o amor da vida de uma de suas amigas.

Sim. Vanessa e Charlotte eram agora amigas. Tudo começou quando Vanessa percebeu que Charlotte não ficara com Samuel por causa dela e decidiu se aproximar usando os livros como desculpa. Afinal, as duas moças eram habituadas a leitura desde muito novas e conheciam os grandes clássicos da literatura. Embora Vanessa nunca tenha admitido nada e nunca tocara no nome de Samuel, Charlotte sabia que ela gostava dele. Conseguia ver isso nos olhos azuis da garota rechonchuda de cabelo roxo. Por isso precisava tanto vencer a atração que sentia por Samuel. Quando uma lágrima tentou brotar de seus olhos, soube que deveria sair dali. Chamou as amigas até o quarto. Teriam um tempo para tomar banho e fazer um lanche rápido antes de voltarem para casa e pretendia usá-lo para explicar a situação à Rachel, Laura e Blair.

- Me acompanhem, por favor.

Falou bem baixinho, permitindo que apenas as três ouvissem e saiu andando em direção aos chalés. Foi na frente para que nenhuma delas visse as lágrimas que agora rolavam por sua face imaculada, entretanto Rachel percebeu o ato que ela tentava esconder. Apesar de serem amigas há pouco mais de um ano, Rachel e Charlotte se conheciam desde a alfabetização, porém, nunca se deram bem. Quando boatos sobre a ruiva começaram surgir e alguém disse que Charlotte estava namorando o garoto por quem uma de suas amigas era apaixonada, as duas se aproximaram. Eram vitimas do mesmo tipo de crime, embora as consequências fossem diferentes para cada uma delas e isso as fez se aproximarem. Esqueceram as diferenças e se ajudaram no que poderia ser um dos momentos mais difíceis daquele tenro fim de infância e inicio da adolescência. Assim Rachel sempre conseguia perceber o que Charlotte sentia através daquele espesso muro que ela erguera sobre si mais que qualquer outra pessoa, incluindo Blair e Laura as amigas mais antigas da Cher. Contudo, Rachel sempre preferia não falar nada. Sabia o quanto sua melhor amiga era reservada em relação a qualquer coisa que envolvesse os próprios sentimentos e apenas se colocava a disposição para quaisquer coisas. Mas hoje seria diferente. Charlotte chorava e a ultima vez que isso acontecera fora há um ano e meio, quando ela e Blair brigaram por conta de uma apresentação e Carter teve de fazer o papel de conciliador.

Ao entrar no chalé, Rachel pôs as mãos na cintura e fitou Charlotte severamente. Os olhos da menina estavam ligeiramente vermelhos por conta do breve choro, o cabelo pendia de um coque mal feito, não a deixando esconder nenhuma parte do rosto. Abraçava-se e tentava encolher-se num canto, entre a porta para a varanda e a cama, como se pudesse ficar menor do que já era e desaparecer. Parecia, ao mesmo tempo, perdida em pensamentos e decida a fazer algo muito importante. Por vezes, oscilava entre a garota forte e enérgica que era e a menininha frágil que fora. Estava confusa em um nível que nunca estivera antes e ninguém, nem mesmo Rachel, percebera isso, até agora.

- O que aconteceu? – Blair olhava de uma garota para a outra, sem entender a troca de olhares que sucedera a entrada no cômodo.

Charlotte suspirou antes de responder.

- É melhor tomarem banho. Podemos conversar depois.

E foi até a varanda. Era uma área pequena, porém suficientemente grande para abrigar uma mesa redonda de vime, duas cadeiras do mesmo material e um vaso de flores de alguma espécie desconhecida pelo grupo, num canto da parede. Sob a mesa encontrava-se um exemplar de um livro qualquer, a página era marcada por uma partitura um tanto quanto amassada. Ela segurou o livro em suas mãos e abriu na página exata onde a partitura estava, recostando-se na parede, um pé apoiado no jarro, e passou os olhos pela folha sem, entretanto, nada reter. Rachel a encontrou nesta posição.

- Explique-se Charlotte. E não me venha com essa história de “deve ser minha TPM”.

Charlotte abriu a boca uma, duas, três vezes sem deixar escapar som algum. Por fim decidiu sentar e falar de cada pequena parte oculta de sua recôndita alma, ou ao menos a parte mais superficial e recente. Continuaria a ocultar aquela parcela tecida em tempos antigos com linhas de ouro e pureza, bordadas com a dor e a felicidade fantástica que jamais seria alcançada novamente, por mais que tentasse, com todas as suas singulares forças.

- Talvez se deva ao fato de eu nunca entender o que sinto. Talvez seja porque eu simplesmente não quero entender o que sinto, ou talvez eu esteja me enganando em todos os vãos minutos dessa minha existência, mas tudo tem ficado cada vez mais, insuportável. – suspirou, esperando a reação da outra.

- Agradeceria se me dissesse sobre o que estamos falando...

- Samuel. Sobre o que mais poderia ser? – perguntou debilmente, antes de continuar a revelar os mistérios que lhe cercavam recentemente – Finalmente decidi o que quero, entretanto meu corpo me trai. E simplesmente não posso obedecer aos meus impulsos e instintos mais primitivos porque, caso o faça, trarei a dor. Não somente a pessoas que gosto, bem como aquelas que não conheço; aquelas cuja a participação na minha vida pode ser tanto vital quanto ínfima. E tenho medo das implicações que minhas atitudes trarão. Encontro-me agora numa encruzilhada onde sentimentos e razões lutam para tomarem conta de meu ser. Não sei o que fazer!

- Ei! Calma, garota...

Rachel caminhou até ela e abraçou-a. Afagou aqueles cabelos castanhos, mais lisos que cacheados, enquanto sentia as lágrimas salgadas da melhor amiga encharcarem seu ombro sujo de areia. Eram lágrimas de angustia. Uma angustia tão profunda e ao mesmo tempo irrelevante que conseguia transformar Charlotte em uma criança boba, ao contradizer tudo aquilo que costumava pregar para as meninas suas colegas.

- Ai meu deus! – Blair estava no batente da porta, com os braços cruzados, uma expressão fechada no rosto, se fazendo notar pela primeira vez nos longos minutos decorridos durante o depoimento e choro de Charlotte. – Você precisa pensar mais em si Cher!

Charlotte se desvencilhou do abraço de Rachel.

- Não é questão de não pensar em mim. O problema é justamente o contrário: estou pensando demais em mim.

- Ah, sinto muito então! – Blair irritou-se com as dificuldades que Charlotte criava para a própria vida – Vou indo porque não tenho tempo para essas complicaçõezinhas que você inventa Cher.

- Eu não estou inventando nada! – Charlotte levantou a voz, a ira começando tomar conta da menina - É realmente difícil...

- Está sim! – Blair avançou para ela, o dedo em riste, inflexível – Faça o quer uma vez na sua vida, não o que dizem ser o certo! Siga seus conselhos.

E foi o que ela fez. Charlotte obedeceu ao que sempre pregou: seguir os próprios instintos, independentemente de a sociedade julgá-los certos, ou não. Se o arrependimento veio, não é sabido. O fato é que a vida da garota foi modificada naquele vão momento. A decisão que tomara foi capaz de transformar todo um destino já predestinado. Charlotte, a partir daí, começou a escrever sozinha uma história autêntica, peculiar e, acima de tudo, sua.

Entretanto as metamorfoses daí decorridas não ocorreram imediatamente. Os primeiros impactos foram avassaladores, porém corriqueiros. A maior alteração acabou por suceder interiormente. Foi naquele pontinho frágil da alma suscetível a rupturas no qual ao ser quebrado, é aberto um buraco do tamanho do mundo capaz de puxar para si todas as possibilidades do mundo; perspectivas que ninguém imaginara antes. E naquele pontinho frágil da alma suscetível a rupturas, Charlotte teve a visão de um caminho diferente, do futuro que a aguardava ansiosamente. Ela só precisaria dizer “sim” ao ímpeto íntimo que a conduzia.

Apesar de tudo, ela hesitava constantemente, posto que não gostava de ser o centro dos olhares alheios. Não era seu desejo ser conhecida e, assim, se refugiava nas canções e em livros que a ajudavam a fugir da realidade que agora assustava. Passou as férias de verão trancada no quarto, com o som e as palavras escritas a fazerem-lhe copainha em todos os turnos. A voltar à escola, acrescentou a rotina deprimente doses diárias de estudo. E o dia-a-dia mentalmente cansativo a afastou do falatório incessante sobre a vil traição de que participara. Consequentemente, o isolamento a distanciou das amigas.

Os dias foram se transformando em semanas e estas em meses sem que Charlotte percebesse o mal que fazia a si com o retraimento voluntário. Já não ia a tantas festas ou saia à tarde como costumava fazer, preocupava-se apenas em tornar-se invisível. No entanto, alguns acontecimentos de meio de ano a fizeram mudar de ideia e ceder à pressão que algum ser divino impunha sobre ela para aceitar seu tão brilhante futuro. Afinal, mesmo que ela renegasse essa peculiar característica com todas as forças a si inerentes, estava em seu sangue ser simplesmente extraordinária.




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