segunda-feira, 12 de maio de 2014

CONTOS,ENCONTROS E ENCANTOS DE CHARLOTTE TISSOU-CAPITULO 12



Capítulo Doze



Os fios castanhos caiam sobre o rosto de Aya enquanto ela desenhava, com uma precisão arquitetônica, a quadra do colégio. Luna estava ao lado dela com uma maçã nos lábios. Era estranhamente a imagem do pecado e da luxúria, lembrando a Charlotte Eva, da história da criação. Raquel debruçava-se sobre a mesa de jacarandá acompanhado cada risco do lápis. A própria Charlotte estava com o notebook no colo, sentada de pernas cruzadas no chão. Procurava vídeos de apresentações, roupas, maquiagens... Tudo com o tema “Cinderela”.

Azul era a cor. Como o céu e a serenidade. Todavia, a calma não estava em seu interior. As batidas rápidas no teclado carregavam ansiedade. Sentia-se correndo contra um tempo quase escasso. O relógio avançando, fatos se sucedendo. Ela sendo deixada para trás, como um objeto a ser descartado. A certeza do fracasso invadiu-a. O malogro do ano anterior repetir-se-ia. Possuía verdadeira convicção quanto a isto. Pânico. Charlotte não queria passar vergonha. Toda a cidade estaria ali para ver seu desfile. Sim. Seu. Ela ficara responsável por fazê-lo e iria doar tudo de si. E, caso perdessem, caso viesse à ruína, não seria por falta de esforço. Mesmo, assim, a tristeza a invadiria.

Retirando ânimo do medo, levantou-se e prostrou-se à frente de Aya, Raquel e Luna, que trabalham na planta da quadra. Aya era perfeccionista e a sombra feita pelo corpo de Charlotte a fizera escorregar o lápis um milímetro no papel maculado apenas pelo perfeito desenho. A garota japonesa levantou o rosto, seu olhar demonstrando irritação.

— Pensou em algo Charlotte Tissou? — Aya sempre era severa. Chamar a todos pelo nome completo era um hábito que acentuava aquele traço característico em particular.

— Se ela não tivesse pensado em alguma coisa, não viria aqui, não é mesmo? — Luna atirou, revirando os olhos e fingindo indignação.

Charlotte achou melhor interromper antes que as provocações de Luna causassem uma briga. Tudo o que a desfalcada equipe – segundo pensamentos de Charlotte – não precisava era que Aya decidisse não ajudá-los.

— Vejam bem, estava analisando alguns pontos — e parou, esperando que as meninas prestassem exclusiva atenção nela — E dei-me conta de que toda a apresentação ficaria muito mais original e única se um fator fosse levado em conta.

— E que fator seria este? — perguntou Aya, já acompanhado o raciocínio de Charlotte.

— Alguns estilistas desenham roupas especialmente para as damas da alta sociedade. Roteiristas criam personagens perfeitos para alguns bons e populares atores...

— Aonde quer chegar Cher? — Raquel interrompeu-a.

— Bom, o fato é que grande parte do que é produzido exclusivamente para alguém se torna um épico ou é ovacionado pelo público.

— O que você está sugerindo é...

— Singularidade, cara Aya. Sin-gu-la-ri-da-de.

— Está sugerindo um sui generis ou algo do tipo? — Luna perguntou, obviamente repetindo uma expressão que ouvira em algum lugar que, entretanto, não sabia utilizar direito.

— Exatamente! — exclamou Charlotte — Estou sugerindo uma apresentação sui generis. Única em seu gênero. Peculiar.

— Que seria...?

— Não é óbvio? — Aya olhou Raquel incrédula, como se os planos de Charlotte estivessem expostos em um outdoor com letras em neon.

Raquel e Luna balançaram a cabeça negativamente. Elas não possuíam o mesmo raciocínio rápido de Aya, de modo que esperavam que alguém explicitasse a proposta de Charlotte.

— Simples. Devemos fazer um desfile especialmente para alguém.

— Mais que isso. — Charlotte pôs-se a deslindar sua ideia — O nosso desfile, especificamente, deveria ser completamente produzido para ser protagonizado por um casal distinto.

— E que casal seria este?

A expressão de Charlotte denotava desanimação. Não houvera pensado nisso. Tantos detalhes pensados, planejamentos mentais feitos rapidamente, explicações e, o mais importante de todos os quesitos, não havia sido sequer considerado pela sua mente. Quem seria a pessoa ideal para a tarefa? Provavelmente uma analise extremamente cuidadosa deveria ser realizada para encontrar o par perfeito. Contudo, para que tal atitude fosse tomada, ela deveria admitir o pequeno deslize. O fez, no entanto, com uma voz baixa e fraca. Estava envergonhada por ter deixado passar o detalhe na frente de Aya, uma menina que não aceitava nada menos que a perfeição e que, muitas vezes, intimidava Charlotte.

— Tudo bem. — Aya estava um pouco irritada com a “falta de responsabilidade”, como encarava a desatenção de Charlotte, porém já tirava um caderno preto da bolsa que trouxera. — Sugestões Luna?

Luna levantou as mãos, como em sinal de rendição. Ainda não havia terminado de comer a maçã, por isso a cena foi meio cômica.

— Me deixem fora dessa, por favor. — Ao olhar inquisitivo de Aya, ela explicou — Não quero me envolver com planejamentos. Podem me pedir qualquer coisa, menos para dar ideias ou planejar algo.

— Tudo bem.

Aya lançou-lhe um olhar cauteloso, medindo as próximas ações. Anotou algo em seu caderninho de capa preta e virou-se para Raquel, fazendo a mesma pergunta.

— Ah, claro que sim. — Raquel abriu um grande sorriso, pronta para expor o seu “par perfeito” — Para as meninas pensei em Ingrid ou Camila. Já para o menino, existe apenas um: Francisco.

— Nenhum deles — disse Aya severamente.

— Por quê? — Charlotte perguntou — São pessoas bonitas...

— Vejamos bem — Aya começou a enumerar as possíveis razões para sua recusa — Porque eu não confio em Francisco. Porque Ingrid mora em outra cidade, dificultando os ensaios. Porque Camila é a pessoa mais irresponsável que já conheci.

— Então devemos nos basear em sua desconfiança para tirarmos o menino mais bonito do Instituto de campo? — Raquel perguntou, chocada.

— Geralmente não me engano em relação ao caráter das pessoas.

— Geralmente? — a voz de Raquel saiu mais fina que o desejado, ela não estava acreditando em seus ouvidos — Geralmente não é sempre, Aya. Você não é a senhora do destino ou algo do tipo para dizer como as pessoas são.

Ela esperou uma resposta que nunca chegou e continuou, após uma longa pausa.

— Além do mais, não pode eliminar Ingrid apenas porque os ensaios podem ser prejudicados. Você não prevê o futuro, prevê? Não sabe como as coisas vão acontecer! — gritou antes de endireitar o corpo, ficando mais rígida, e moderar o tom de voz — Também não pode julgar Camila por um único trabalho que fez com ela. É ridículo.

— Ridícula foi a cena que acabou de fazer. — Voltou os olhos para o caderno preto anotando mais alguma coisa em sua letra minúscula — Mais alguma sugestão?

O cômodo permaneceu em silêncio. Luna e Charlotte receavam falar. Raquel inspirava e expirava rapidamente, tentando controlar a raiva. Contudo, não foi bem sucedida. Cerrou um dos punhos e apontou um dedo no rosto de Aya, alguns minutos depois.

— Você não manda em tudo Aya. Sua opinião não é a mais importante de todas.

E saiu da biblioteca pisando forte. Seus passos ecoaram na mente de Charlotte por alguns instantes antes de se dar conta do que acabara de acontecer. Piscou os olhos por alguns segundos antes de tomar uma decisão.

Lógica e racional, desprovida de emoção. Continuou ali. Iria procurar Raquel mais tarde. Talvez até a encontrasse em seu quarto ou no cinema projetado por seu pai. Todavia, o importante agora era resolver o problema que ocorrera recentemente.

Uma Aya nervosa ou irada era muito perigosa. E não poderiam obter o luxo de perder a genialidade da menina. Infelizmente, Raquel seria deixada de lado por alguns momentos.

— Muito bem — esfregou as mãos, uma na outra, como fazem os vilões de filmes — Acredito que devamos tentar uma nova abordagem para a minha ideia. Poderíamos utilizar casais verdadeiros. Um exemplo é a Joane e o Mauricio. Bonitos, populares e responsáveis ao extremo. Afinal, são ou já foram líderes.

Aya quase sorriu. Era o primeiro esboço de uma risada que ela dava em semanas. Charlotte sentiu-se confiante e Luna, impressionada. Aya anotou os nomes no caderninho e avisou que iria tratar de se comunicar com os dois, para ver se aceitavam. Charlotte ficou, então, sozinha com Luna.

A garota mais baixa suspirou e largou-se em uma das poltronas da biblioteca, comendo o último pedaço de sua maçã. Fixava o olhar em Charlotte, esperando que a amiga dissesse algo. Como e talvez exatamente por Charlotte continuar parada, em um estado de suspensão física, ela abriu a boca e perguntou:

— O que quer saber, Charlotte Tissou? — Luna perguntou num tom baixo e fino, lembrando os piscas-piscas de Natal das lojas e suas musicas.

Charlotte caminhou até a cadeira de Luna, vencendo o espaço entre as duas. Ajoelhou-se na frente da menina, segurando as pequeninas mãos entre as suas. Olhou profundamente em seus olhos antes de começar a falar.

— Apenas aquilo que deseja contar-me.

Luna revirou os olhos e afastou o olhar da garota.

— Não posso te contar, ainda.

Charlotte riu antes de se dar conta do quão sem graça a situação era.

— Ás vezes você é tão misteriosa. Chega a ser irritante.

Então, ela levantou-se e saiu do cômodo. A porta de madeira ficou balançando enquanto ela atravessava o corredor. As paredes azuis gelo do corredor ostentavam pequeninos lustres, a fim de iluminar o caminho à noite. Passou pelo lavabo e pelo quarto do pai. Ao chegar perto da escada que a levaria à sala, percebeu que a porta do próprio aposento estava aberta. As sombras jogadas no chão indicavam que o sol logo iria se pôr. Que horas eram? Quanto tempo passou organizando um desfile sem nada decidir? Provavelmente muito.

Preparava-se para adentrar no recinto quando Luna agarrou seu braço. Os dedos da garota forçaram Charlotte a virar-se sem descobrir o que havia dentro de seu próprio quarto.

— Não é questão de mistério. É só medo... — Luna falou hesitante, sem largar Charlotte.

— Medo de quê? Pensei que confiasse em mim, Luna. — Charlotte soltou-se, jogando o cabelo para trás e se encostando à parede ao lado da porta.

— E eu confio. — Luna falou olhando para o chão. O rosto estava encoberto pela sombra de Charlotte, impossibilitando distinguir suas feições — Só não posso falar nada por agora. Não é um segredo meu. Mas prometo que qualquer dia eu te conto. — levantou a face intentando lançar um sorriso confiante que não convenceu Charlotte.

— Luna, se algum dia, porventura você verdadeiramente desejar contar-me este segredo, avise-me. Assim não farei perguntas casuais em momentos aleatórios sobre este assunto. — Charlotte voltou-se para o recinto que se estendia a seu lado e adentrou-o.

O quarto estava vazio e silencioso. Charlotte, parada de frente para a cama, estava lívida. Luna, que a seguira, percebera a rigidez do corpo da amiga. Esperou, contudo, que ela dissesse algo. Não saindo sequer um ruído dos lábios da garota morena ao seu lado, Luna pronunciou-se.

— Tem alguma coisa errada?

— Não. — Charlotte respondeu hesitante, começando a balançar o corpo de um lado para o outro.

— Então pra quê essa cara?

— A Raquel não está aqui.

Charlotte se dirigiu ao closet e Luna foi atrás. Olhavam atrás de cada prateleira e em cada canto.

— Eu já percebi isso sozinha. — a menina estava um pouco irritada com a busca inútil.

— Caramba — ela escorregou para o chão — Raquel está mesmo com raiva de mim.

Luna ajoelhou-se incrédula.

— Toda essa busca era por causa disso?

Luna não conseguia entender o drama de Charlotte. Nem ela própria conseguia. Apenas sabia que deveria ter ido atrás de Raquel após a briga na biblioteca, contudo não o fez. Deixou a amizade em segundo plano em prol de uma prova idiota de um evento mais idiota ainda.

— Fiz uma escolha errada e agora me culpo por ela. — Charlotte escondeu o rosto nas mãos — Gostaria apenas de parar com esta terrível mania de não perceber a hierarquia das coisas na minha vida. De confundir o que realmente possui relevância com o que é trivial.

Luna abriu os lábios algumas vezes e os fechou novamente. Não sabia ao certo o que dizer. Estava processando a informação, buscando compreendê-la. Seu cérebro, por fim, percebeu a ligação entre os pensamentos de Charlotte e a realidade.

— Você não está falando da Raquel. Fala de Laura. — sussurrou levantando-se — Ok. Já passa da hora de vocês fazerem as pazes.

— Não seja boba Luna. — Charlotte riu amargamente — Laura me odeia só de imaginar a possibilidade de algum tipo de envolvimento meu com Alaric.

Luna revirou os olhos. Desde o desentendimento na casa de Carolina, este era o assunto favorito de Charlotte. Não sabia onde Raquel estava. Provavelmente fora se encontrar com Carter; provavelmente estava desistindo de terminar o namoro novamente. Tampouco fazia ideia de onde Clair — a irmãzinha de Charlotte — se metera. No entanto, havia dois pontos nos quais sua mente insistia em fiar-se. Primeiro: nada podia fazer quanto à briga de Laura e Charlotte. Elas duas deveriam resolver este problema no relacionamento sozinhas. Segundo: Charlotte precisava descansar. Não o tipo de repouso obtido com o sono, mas a tranquilidade conseguida apenas com o lazer. Lembrou-se de algo.

Luna saiu correndo do closet sem nada dizer. Tinha um brilho animador no olhar. Uma ideia acabara de ocorrer a ela, Charlotte percebeu. Contudo, a garota não tinha qualquer curiosidade em descobrir o que era. Continuou ali, sentada. Cogitava a possibilidade de tocar alguma coisa. Porém, a música não lhe ajudaria. A sensação de paz não seria suficiente.

Muita coisa acontecia em sua vida. Não eram eventos que mudavam completamente o rumo de seu destino. Apenas fenômenos internos com os quais não sabia lidar. Pensava demais na mãe, brigava com as amigas... Sentia-se perdida. Deveria deixar as lágrimas escaparem, no entanto este não era um momento triste. Era o cansaço. O estresse. Passaria. Tinha de acreditar que passaria.

Luna voltou e a encontrou no mesmo lugar. Sorria. Puxou Charlotte e a conduziu ao banheiro. Disse-lhe para tomar banho. Meio sem pensar, ela obedeceu. Luna começou a mexer nas roupas da amiga, procurando algo decente. Encontrou um vestido branco, com decote em formato de coração. Quando Charlotte saiu do banheiro, envolta numa toalha cor de rosa ela anunciou o que iria acontecer a seguir mostrando a roupa escolhida.

— Liguei para a Joane e ela disse que vai haver uma festa na casa de um pessoal da faculdade. Ela vai com o Mauricio e eles irão passar aqui para te buscar as oito.

Charlotte começou a rir. Ela gostava de festas. De vez em quando. E, geralmente, preferia comemorações íntimas. Nada de ir a lugares que não conhecia. Ainda mais quando todas as pessoas eram estranhas.

— Nada disso. Meu pai viajou e tenho que cuidar da Clair. — era a desculpa mais convincente.

— Clair ficaria muito feliz em ter a casa toda para ela. — Luna tentava persuadi-la — Vamos! Você precisa se “desestressar”.

Charlotte não cedia e já procurava um short jeans.

— Olha, eu não sou a melhor a melhor compainha para festas, mas a Joane é. — seguia a amiga, tentando argumentar em seu próprio favor — E, além do mais, eu posso ligar para Blair e pedir que ela venha aqui lhe convencer.

Charlotte parou e Luna percebeu que vencera. Blair costumava irritar tanto as pessoas que elas acabavam cedendo a sua vontade. Era necessária muita confiança para permanecer fiel ao seu desejo. Charlotte não se sentia disposta a “lutar” com Blair naquele momento.

— Precisamos comer algo antes — disse pegando o vestido branco.

Pediram pizza. Clair chegara ao mesmo instante que o entregador. Alimentaram-se então as três juntas. Em meio a assuntos triviais, Luna e Charlotte convenceram Clair a guardar segredo sobre a festa. Benjamin certamente não gostaria que nenhuma das filhas fosse a um evento de universitários. O sigilo era, assim, inevitável.

Terminada a refeição, subiram para ajudar Charlotte a vestir-se. O vestido branco combinou perfeitamente com os lábios escarlate. Um penteado clássico adornava sua face. Enquanto esperava, junto a Clair e Luna, Joane chegar, foi se esquecendo das pequenas discussões que enfrentara ao longo da semana.

Finalmente a campainha foi tocada. Joane, em seu vestido de um ombro só, sorria. Charlotte notou que Mauricio esperava no carro. Ele dirigia, infringindo a Lei. Charlotte deveria se importar ou, ao menos, desistir de entrar em um veículo conduzido por alguém sem carteira. Entretanto, fora persuadida por Luna mais cedo, e sentou no banco traseiro.



A música voava em espirais pelas janelas abertas do carro. A casa ficava em um bairro cosmopolita da cidade. Era grande e vários carros estavam estacionados em frente a ela. A porta estava convidativamente aberta. Pessoas entravam e saiam e Charlotte perguntava-se como os vizinhos ainda não haviam reclamado do barulho. Antes de descer do carro, sentiu a atmosfera do local. Já se preparava para encontrar bebidas em demasia circulando pela sala.

No entanto, no local onde costumam ficar sofás e poltronas, encontrou apenas alguns casais conversando.

— A festa de verdade é lá dentro — Mauricio disse, puxando ela e a namorada em direção ao quintal.

Gramado, música, piscina e universitários. A isso era resumida a festa. Em um ou outro ponto, avistou pessoas conhecidas. Em sua maioria, gente do terceiro colegial. Um ou outro do primeiro e segundo colegial de outra escola encontrava-se ali também.

— Ei! — uma menina alta caminhou até eles — Não sabia que viria Cher! — ela gritou sorrindo — Querem tomar alguma coisa?

A menina os conduziu ao lugar onde estavam guardadas as bebidas. Aparentemente, era ela quem dava a festa. Havia algo, porém, que Charlotte não compreendia. Como uma garota que nunca vira na vida sabia seu nome? A questão a incomodou por alguns instantes, mas foi completamente esquecida quando depositaram uma garrafa de cerveja em sua mão.

Charlotte nunca bebera nada além de vinho. E fora apenas uma taça no último Natal. A menina piscou para ela e murmurou um “não conte ao seu pai”. Perante a lembrança do pai Charlotte pensou em recusar a bebida. Contudo, não o fez. Apenas afastou-se, sem impedimentos, com a cerveja na mão, deixando Joane e Mauricio com a estranha que sabia seu nome.

Caminhou pelo espaço da festa, ouvindo uma música que não gostava. Meia hora já passara e a única coisa que sentia era sono e arrependimento. Não estava se divertindo. A garrafa já estava quente em sua mão, e quase não fora tocada. Deixou-se vagar mais uma vez até encontrar o caminho da sala por onde entrou.

Muitos outros casais estavam ali. Charlotte abriu caminho por entre eles e foi para a porta. Sentou no passeio. Ficou ali, observando a rua e as casas modernas enquanto bebericava a cerveja quente. Em algum momento, soltou os fios e começou a cantarolar. Inspirou a solidão de olhos fechados e quando os abriu novamente viu que alguém lhe fazia compainha.

A princípio, não o reconheceu. Porém, ao olhar com mais atenção soube exatamente quem era. O cabelo desgrenhado e os tênues lábios não deixavam engano. Era aquela a pessoa que ela menos esperava encontrar naquele local.

Alaric falava com alguém ao telefone. Aparentemente, a pessoa do outro lado da linha não dizia coisas agradáveis. Toda vez que seu rosto encontrava um ponto de luz, Charlotte via nele irritação. Quando a chamada foi encerrada, ele descansou a cabeça nos joelhos. Passou a mão pelos fios escuros e olhou para o lado. Só então pareceu notar Charlotte.

— D-desculpe... Ficar ouvindo sua conversa... — Charlotte fitou o chão, envergonhada.

— Não... Tudo bem. — Alaric piscou algumas vezes e então sorriu — Não sabia que vinha a este tipo de festa.

— Eu não venho. — Charlotte respondeu rapidamente; percebeu que ele não acreditara — Só estou aqui por que...

Alaric riu.

— Entendo — disse, mesmo sem entender — Está esperando alguém?

— Joane e Mauricio. Vim com eles.

Ela explicou apontando para a festa atrás deles. Agora, desejava ardentemente que seus amigos saíssem de lá e decidissem voltar para casa.

— Você quer ir embora, não é? — Ele perguntou, pondo a mão no antebraço da garota, que assentiu — Se quiser te dou carona.

A menina pensou por alguns segundos. Tudo o que queria era ir para casa. Não com Alaric. Alaric não estava nos seus planos, não agora. Contudo, algo a impeliu a aceitar o convite.

— Vai ter que me ajudar a procurá-los para avisar que vou embora. — disse já se levantando e esperando que ele a seguisse.

Joane e Mauricio não estavam na sala. Tampouco no quintal. Procuraram nos cômodos do térreo, mas nada encontraram. Alaric sugeriu que olhassem mais uma vez no gramado atrás da casa. Havia muitas pessoas ali e podiam não ter percebido o jovem casal.

Em algum ponto da busca, Alaric segurou a mão de Charlotte. A menina não sentiu arrepios ou choques elétricos como contam os livros. O toque proporcionou-lhe paz. Calmaria. Um tantinho de felicidade também. A mão dele parecia ser o lugar certo para a sua repousar. E assim caminharam até encontrar o casal procurado.

Estavam rindo descontroladamente ao lado da menina misteriosa. Os lábios de Joane estavam vermelhos como se ela acabasse de beijar alguém voluptuosamente; os fios do cabelo de Maurício emaranhavam-se um nos outros, formando nós aparentes; o vestido da garota desconhecida estava amarrotado e amassado. O trio tentava se recompor ligeiramente enquanto Charlotte e Alaric caminhavam até eles.

Charlotte explicou rapidamente que iria para casa com Alaric e saiu. Os olhares curiosos de Joane morreram assim que eles se misturaram aos convidados. Mas não havia ali apenas Joane de conhecida. Outros também reparavam no par de mãos grudadas.

— Acho que pensam que estamos juntos. — Charlotte forçou uma risada, como se aquela fosse uma grande piada.

— Tecnicamente estamos. — ele não sorriu, mas sentiu certa alegria com o provável pensamento dos outros.

Já fora da casa, Alaric a conduziu para uma moto preta. Charlotte não tinha certeza se as mesmas leis que proibiam menores de dirigir carros valiam para motos, mas já havia quebrado um número razoável de regras a ponto de não se importar mais. Apenas sentou atrás dele, pôs o capacete na cabeça e segurou firmemente a camisa preta do menino quando ele deu a partida.

O vento fazia alguns fios grudarem em seu rosto. O fato de o vestido ser sem alça também não a protegia do frio. Tudo o que podia fazer era agarrar-se mais ainda a ele, na esperança de aquecer-se. Fechou os olhos durante a viagem. Quando sentiu a moto parar abriu-os novamente.

Estavam em lugar desconhecido. Um estacionamento recheado de pessoas e barraquinhas de doces. Charlotte ia perguntar onde estavam, mas avistou uma roda-gigante. Não precisou que ninguém lhe dissesse nada. Só não fazia ideia do motivo de estar ali.

— Bom... — Alaric encolheu os ombros, respondendo a pergunta mental dela — Esta é a ideia que tenho de um encontro.

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Aquela não fora uma noite mágica. O coração de Charlotte não disparou nenhuma única vez. Suas pernas não ficaram bambas; seu olhar não brilhava e seu rosto não possuía um sorriso estampado. Mesmo assim, se divertiu.

Comeram carne no espeto e beberam muito refrigerante entre um brinquedo e outro. Conversaram sobre as experiências que tiveram em outros parques; riram das piadas contadas por um idoso que acompanhava seus dois netos na fila da montanha-russa; e depois da terceira rodada seguida no carrinho bate-bate, Charlotte convenceu Alaric a levá-la para casa.

Dessa vez, ela não sentiu medo ou frio. O ar estava mais gelado, contudo a adrenalina ainda corria em suas artérias, esquentando-a. Sentiu-se então, mais a vontade na viagem de volta. E pareceu-lhe que a velocidade da moto era menor. Incrivelmente, apreciou o novo ritmo.

O leve caminhar do automóvel permitia-lhe observar as estrelas e sentir toda a atmosfera da noite. Era diferente de passear trancada em um carro, onde tudo o que se vê é através de um vidro. A moto dava-lhe liberdade. Agora que não sentia mais medo, percebeu que gostava de ser livre.

A moto parou finalmente. Entretanto, mais uma vez, não era a sua casa. Estavam na Avenida Noturna. Uma rua cheia de bares e restaurantes. Um ponto muito frequentado por jovens. Ela desceu e encarou seriamente Alaric.

— O que estamos fazendo aqui? — o cenho estava franzido e ela abria e fechava as mãos — Você disse que me levaria para casa.

Ele já estava na frente dela, tentando segurar sua mão. Porém, Charlotte o afastava toda vez que ele se aproximava.

— Achei que deveríamos comer. Passamos bastante tempo naquele parque e só botamos na boca aqueles pedaços de carne e refrigerante.

— Você disse que me levaria para casa. — Charlotte repetiu solenemente.

— É... Mas eu não disse que te levaria direto pra casa — Alaric sorriu, apoiando-se na moto — Ah, vamos lá Charlotte. Apenas um pouco de comida.

— Eu quero ir para casa.

Alaric suspirou. Poderia passar a noite inteira discutindo com ela. Provavelmente conseguiria convencê-la. Charlotte não poderia estar tão decidida como demonstrava. Porém, para não arruinar a noite, cedeu à vontade dela.

— Acho que eles entregam sushi em casa. — disse subindo na moto.

— Quem disse que eu te convidei para ir a minha casa? — ela acompanhou-o demonstrando irritação.

— Não preciso de convites, meu bem.



E acelerou.

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